"Há imagens da chegada em turba dos hooligans. Uns escassos segundos, subitamente terminados. Depois, imagens da destruição e dos jogadores atarantados, de um gigante incompreensivelmente ferido. Pelo meio, o silêncio imposto aos jornalistas.
O início da ameaça foi a exigência dessa mordaça: "Desliga isso", "se filmas alguma coisa ficas sem máquina", "se tiras fotos, parto-te a cara". A violência gratuita em estado puro, que se julga inimputável, que procura instilar o medo. Como chegámos aqui? E como sairemos desta encruzilhada?
O problema começa por ser desportivo. Quando um grupo de adeptos tenta espancar os jogadores e a equipa técnica do clube que diz apoiar ultrapassaram-se todos os limites. O repúdio do que aconteceu tem de ser consequente: a justiça deve ser exemplar. Quem tem estas práticas deve ser irradiado dos recintos desportivos.
E o que se fará quando se provar que estes hooligans fazem parte de grupos organizados de adeptos? Continuar-se-á a considerar normal que os clubes concedam privilégios a estes grupos organizados (descontos de bilhetes, autorização de revenda, utilização dos direitos de imagem, etc.) e não assumam nenhum tipo de responsabilidade pelas suas acções? Será aceitável que estes grupos de adeptos se portem como braço armado de presidentes ou direcções de clubes para criar um clima de coação sobre as equipas? E os discursos de ódio de dirigentes desportivos continuarão a ser tolerados?
Neste caso concreto, haverá alguma multa ao Sporting? Algum jogo à porta fechada? Existirá alguma consequência para o clube? A Liga ou a Federação Portuguesa de Futebol irão continuar a assobiar para o lado enquanto o clima de ódio vai alastrando?
É certo que o futebol não é apenas um desporto. Transformou-se num negócio de milhares de milhões de euros. Por isso mesmo a sua organização foi cada vez mais fechada na autorregulação dos clubes, afastando a acção e a intervenção públicas. O caminho trilhado não foi o da actividade desportiva, mas o da actividade comercial. É um negócio para os clubes, para meios de comunicação e patrocinadores. A visão da Liga Portugal traduz isso com clareza: "Mudar o paradigma actual, com a criação de um modelo de negócio mais rentável, com capacidade de despertar mais interesse dos media e atrair mais investidores." Apenas os adeptos ainda pensam este desporto com o coração.
Um jogo de futebol já não são apenas 90 minutos de bola corrida, com mais ou menos tempo de compensação. Transformou-se em horas de antecipação nos meios de comunicação, das imagens em direto dos insultos entre claques à chegada ao estádio, dos programas que se transformam em arenas de circo onde os argumentos se resumem a ofensas, das apostas ao minuto e dos milhões que precisam da corrupção para viciar os resultados.
O aumento do discurso de ódio, em que agora o alvo até pode ser a equipa de quem se gosta ou da qual se é presidente, é o ingrediente final que permite uma conclusão óbvia: o mundo do futebol português está em autofagia e, nesse processo, a atingir muito negativamente o país. Considerar que o negócio de futebol se tornou intocável é inaceitável perante os acontecimentos recentes. É essa a coragem que o governo tem de mostrar num momento tão delicado.
Os clubes parece que deixaram para trás as genuínas preocupações com o futebol no plano desportivo. Contudo, têm de perceber que o ódio e a violência são um mau negócio. Um dos poucos estudos sobre os efeitos económicos da violência no mundo do futebol analisou a década 1984-1994 no Reino Unido. Uma primeira conclusão é intrigante e até desconcertante, mas ajuda a compreender algumas motivações a que por vezes assistimos: no curto prazo, a violência até pode ter um efeito positivo no desempenho económico das equipas. Empiricamente podemos concluir que, por um lado, isso resulta numa pressão (ameaça) à equipa para responder às expectativas criadas pelos adeptos violentos. Por outro lado, é também motivo de ameaça a equipas adversárias ou a equipas de arbitragem que, mesmo que inconscientemente, podem sentir-se inibidas na sua liberdade.
A segunda conclusão do estudo é lapidar: no médio e longo prazo, a violência no desporto afasta as pessoas e leva o negócio à agonia. Desvia os adeptos, que temem pela sua segurança, ou as famílias, que não colocam as suas crianças em perigo, diminui as receitas publicitárias e cria uma conotação negativa sobre o desporto em causa.
Se o futebol quer ter um futuro, é indispensável mudar drasticamente o presente."
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