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Esta é a história do jogador que parou um Benfica-Sporting à procura de um brinco, que aparecia no Estádio da Luz de Jaguar e motorista, que levava um cão para os treinos e o amarrava a uma baliza, que não tinha medo de pôr a cabeça onde outros só punham os pés. Vítor Baptista teve tudo e tudo perdeu, na droga, na noite e em maus negócios
Eram quatro miúdos que se mexiam em bando. Onde um ia, os outros iam, e juntos metiam-se por atalhos e em trabalhos, porque se julgavam imbatíveis. Toda a gente os conhecia nos bairros de barracas de Setúbal por estas ou por aquelas razões — raramente boas, geralmente más. Não tinham medo de nada. De roubar maçãs, ameixas e laranjas das quintas da Camarinha, para serem comidas ou vendidas aos jogadores do Vitória por 10 tostões — e no entretanto escapar à GNR montada a cavalo. De andar à bulha, porque o tamanho não importava, mas sim a força com que se dava — e o Jaime, o Pedro e o Florival davam como gente grande. De apostar nas futeboladas feitas com bolas de pano, porque eles eram bons de bola — sobretudo, o Vítor era bom. E, se o Vítor não chegava para ganhar, tinham sempre o Pedro, o Jaime e o Florival para darem conta do recado. Ou as pernas para fugirem a oito pés. Descalços e calejados.
Dos quatro, o Vítor era o mais corpulento, mas também o mais calmo. Anos mais tarde, seria conhecido como “O Maior”.
Naquele tempo, o Vítor punha-se um bocadinho à margem das confusões daquele bando. Como daquela vez em que os quatro correram com sete ou oito rapazes do Campo dos Arcos para ocupar o largo. Ou da outra, junto à Praça de Touros, em que o Florival pegou num lavatório de rua e rachou-o na cabeça de um dos tipos que se metera com eles no cinema. Mais tarde, o mesmo rapaz que ficara a tremer e ensanguentado no chão pagou-lhes umas cervejas para saldar as contas. No Campo dos Arcos, o Vítor ficou a ver, e na noite do cinema apanhou o autocarro e foi para casa.
O que ele tinha era mau feitio. Era orgulhoso e refilão e odiava perder — chorava e chorava muito quando a coisa não lhe corria bem às cartas, aos matraquilhos ou no futebol. Não que isso acontecesse muitas vezes, é verdade, porque ele tinha pedalada para toda a gente.
“Não éramos nada ao pé dele.” É o Pedro quem o diz, mas poderia ser outro qualquer que se lembre de o ver jogar na rua com os pés nus e depois nos clubes de bairro. Num desses clubes, o Rio Azul, o Pedro, o Jaime, o Florival e o Vítor ganharam tudo, e o Vítor foi o que deu mais nas vistas, porque tinha aquele jeito dos predestinados. Era mais rápido, mais forte, mais habilidoso. Se alguém ia chegar longe e deixar a vida nas barracas para trás era o Vítor.
A CASA
Onde hoje está a Avenida Infante Dom Henrique estava a Azinhaga do Mal Talhado. Foi lá que o Vítor nasceu, a 18 de Outubro de 1948, filho de Sebastião Baptista, trabalhador na lota de Setúbal, e de Cecília Baptista, que ganhava a vida na indústria das conservas. O Vítor tinha dois irmãos, o Eduardo, dez anos mais velho, e o Idaliano, cinco anos mais velho. Viviam todos numa barraca cuja porta de entrada era uma folha de lata e madeira; tinha um só quarto, uma cozinha e uma pequena sala. Eram pobres. Passavam fome. Uma sopa de feijão com repolho e ossos de animais dava para uma semana inteira e havia festa nos dias em que se fazia um caldo com as amêijoas da Marinha. O Baptista mais pequeno era esquisito com a comida e fazia fita quando não gostava.
O Vítor, o Eduardo e o Idaliano puxaram todos à mãe, que era robusta, mulher para um metro e oitenta; o pai era frágil mas duro de quebrar e carregava o peixe à cabeça desde a lota até à praça. Um dia, morreu. “Foi do trabalho.” A explicação do Jaime é mais poética do que a dos irmãos do Vítor: para eles, Sebastião caiu na casa de banho e bateu com a cabeça no chão. Foi um ataque que o levou.
Para o Jaime, falar dos Baptista é como falar da família, porque o Vítor era como um irmão mais novo. Um mês e sete dias mais novo. “Nasci a 11 de setembro e ele a 18 de outubro. As nossas mães davam-nos de mamar uma ao lado da outra.”
O Jaime e o Vítor conheciam-se desde sempre e depois conheceram o Florival e o Pedro, do Bairro Carmona, onde jogavam à bola num campo que lá havia. Montavam ratoeiras e armadilhas, iam aos pássaros e à fruta. E faziam rimas. O Vítor costumava dizer esta: “Santo António comigo vai,/ São João comigo vem./ Quando eu estiver a roubar,/ Não quero que apareça ninguém.”
No dia em que o pai desapareceu, o Vítor tinha 10 anos, mas esse assunto nunca foi discutido com os irmãos. Era um miúdo fechado, calado e melancólico. E, quando a mãe se casou pela segunda vez, o Vítor tinha 14 anos. Saiu de casa e foi viver para a pensão da Ti Chica, que ficava num largo como quem vai para os Pachecos, junto à capela. Nessa altura, já o Vítor era jogador do Vitória, que tinha ficado impressionado com o que vira no clube Rio Azul — para trás ficava um emprego como electricista na Junta, ofício para o qual não tinha jeito. Nem paciência.
O Vitória instalou-o na Ti Chica e dava-lhe comida, dormida e 500 escudos por mês, porque os irmãos estavam no Ultramar. Todos os dias, o Vítor guardava os restos que lhe sobravam do almoço e levava-os aos três amigos, que esperavam por ele nas escadas de madeira da pensão — o Jaime, o Pedro e o Florival não tinham andamento para o Vitória e seguiram para o Independente, um clube popular.
Aos poucos, o Vítor fez-se senhor do seu nariz: órfão de pai, longe das saias da mãe, sem os irmãos por perto, ninguém tinha mão nele. Começou a fumar, a beber cerveja e a andar na noite antes de tempo. A vida era dele. E foi isso que o irmão Eduardo percebeu quando regressou da guerra.
OS IRMÃOS
O Eduardo casou com a Sofia e foram morar para um andar na Tobaida, que fica ali perto do hospital; o Vítor deixou a pensão da Ti Chica e juntou-se ao casal. Ele e a Sofia conheciam-se desde os tempos em que ela começara a namoriscar o Eduardo, tinha o Vítor 4 ou 5 anos. Diz a Sofia que aquele miúdo reguila e rebelde que ela vira crescer na Azinhaga do Mal Talhado se transformou num rapaz bonito e jeitoso. E vaidoso. Queria sempre andar aprumadinho, com a roupa da moda, e ela lavava-lhe as calças e passava-lhe a ferro as camisas e as t-shirts preferidas a troco de nada. Ela gostava dele e tratava-o como uma irmã trata um irmão. Mais tarde, quando o Vítor se meteu “naquilo”, a Sofia tratou-o como uma mãe trata um filho.
Ele era magnético, toda a gente gostava dele. “Lembro-me de ele chegar e perguntar por mim: ‘Ó Sofia Loren! Ó Sofia Loren. Estás aí?’ E quando ia a casa da minha mãe gritava: ‘Eh, Ti Noémia! Há aí almoço para mim?’ E ela respondia: ‘Vítor, já está ali o pratinho, está ali à mesa.’”
O Vítor não tinha horários, e o Eduardo deixava-o andar. O que é que ele podia fazer? Castigá-lo? Bater-lhe? O irmão já era homem e ganhava mais do que ele — o Eduardo também jogara pelos sadinos, como central, mas o Ultramar trocara-lhe as voltas à vida.
No apartamento da Tobaida, onde ainda hoje o Eduardo vive com a Sofia, o Vítor chegava, sentava-se, comia e saía sem pedir licença. Tinha dinheiro, mas não o emprestava ao irmão, mesmo que ele estivesse desempregado. E quando arrancou o namoro com a Mimi, uma boa moça, bonita, a Sofia começou a sentir-se usada de cada vez que levava o almoço a casa das futuras mulher e sogra do Vítor. Mas a Sofia desculpava-o: “Ele não fazia por mal.” O Vítor era mesmo assim.
O Idaliano também acha que ele era mesmo assim mas que aquilo não lhe ficava bem. Para o irmão do meio, que nunca teve jeito para a bola e gostava das artes, o Vítor não dava valor ao dinheiro — nem à família. E conta um episódio em que o Vítor estava num grupo de amigos e fingiu não o conhecer na Praça do Bocage. “Meteu-se comigo por ir de livros na mão. E eu disse-lhe: ‘Oiça, amigo, você é tão rico que não precisa de estudar. Mas daqui a uns anos, quando você não tiver nada e eu não tiver nada, serei mais rico do que você.’” Aquilo teve algo de premonitório.
Há outros momentos que mostram como ele vivia desligado da família. O Idaliano conta que o Vítor não foi ao seu casamento nem lhe emprestou o carro comprado com o salário do Vitória para levar a noiva. Mais tarde, passou o mesmo carro para as mãos de um amigo, que o espetou contra uma parede num acidente. “Não sei o que ele tinha na cabeça.”
O VITÓRIA
Na cabeça do Fernando Tomé está o Vítor no Vitória de 1966. Ele já era sénior e o Vítor ainda júnior, mas treinava com os adultos. Era tímido, por ser novo e o mais novo ali, mas não gostava de ser praxado pelos mais velhos. Respondia-lhes coisas como: “Então, mas eu não sou igual a vocês?” O que não faltava ao Vítor era moral.
Conta o Tomé que os dirigentes perceberam que estava ali um craque ao qual faltava o petit nom do futebolista — ficou simples, Vítor Baptista, nome próprio e apelido. Mas Vítor Baptista era uma pessoa bem diferente do Vítor. Como a saúde é da doença. Ou o dia é da noite. O Tomé não se esquece da conversa que teve com ele lá mais para o fim: “Ele dizia-me: ‘Eh, pá, estes gajos são uns burros. Então não me passaram uma carta de condução, olha lá, irmão, até 2012? Não sabem que o mundo vai acabar em 2000?’”
Para o Vítor, o mundo acabou em 1999.
Mas antes sequer de o Vítor tirar a carta, era à boleia do Fernando Tomé que ele andava. O amigo ia buscá-lo a casa do irmão Eduardo no carro emprestado pelo pai, João Tomé, também ele antigo jogador do Vitória. Tornaram-se confidentes do peito, daqueles que o Vítor tratava por “meu irmão”. Comiam na casa dos Tomé, normalmente peixe ao almoço porque à tarde havia treino, e passeavam pelas terras de Setúbal. Uma vez, num Carnaval, foram ambos a um baile de máscaras em Algeruz, chegaram às duas da manhã, e o pai do Fernando disse-lhe: “Se queres fazer esta vida, pegas na mala e vais-te embora.” O Vítor ter-se-á rido. Noutra vez, a polícia prendeu o Vítor por andar a jogar futebol com amigos na praia de Troia e por se embrulhar com o cabo do mar. A polícia esperou por ele na cidade, levou-o preso e pô-lo a dormir na esquadra. No dia seguinte, o Vítor foi a tribunal, pagou 80 escudos e saiu; ninguém tocou nos amigos. Em Setúbal, conheciam-lhe a cara e já lhe tinham tirado a pinta. Para o bem e para o mal. Não seria a última pernoita numa cadeia.
Dentro do campo, as coisas corriam bem. Vítor Baptista era internacional júnior quando foi lançado a titular pelo treinador Fernando Vaz — a quem chegou a vender laranjas que roubava na Camarinha — na mais longa final da Taça de Portugal da história. Aconteceu a 9 de Julho de 1967: o Vitória de Setúbal e a Académica jogaram durante 144 minutos (90 minutos e dois prolongamentos) e os sadinos ganharam por 3-2.
Do outro lado da trincheira estava Toni, que guarda duas lembranças daquela tarde: a coreografia das claques e um puto do Setúbal que tinha cabedal e técnica para outras andanças. O puto era Vítor Baptista, e os destinos de ambos cruzar-se-iam no Benfica. Mas, antes disso, o Vítor tinha um encontro marcado com a fama.
É a cunhada, Sofia, que relembra: “Quando jogou a final da Taça de Portugal contra a Académica, fez um jogão. Chegou aqui, e a casa estava cheia de gente, e ele todo inchado.”
De lá saiu inchado para um restaurante, onde pediu uma imperial e uma lagosta. O Vítor percebeu que os clientes estavam a olhar e decidiu dar espectáculo — bebeu a cerveja de penálti, comeu um bocado da lagosta e mandou-a para trás, como quem diz: como lagosta todos os dias.
Ali estava “O Maior”, e “O Maior” não tinha tempo a perder e tinha dinheiro para gastar. E tinha outras alcunhas. Como “Meu Deus”, que o Fernando Tomé ouviu pela primeira vez num estágio na Pousada de São Filipe, em Setúbal. Acontece que ele, o Vítor e o Pedras, o trio do meio-campo, ficaram juntos num quarto onde só havia duas camas e um divã — e o Vítor ficou no divã. Na manhã seguinte, acordou mais cedo do que os outros, pôs-se a fazer poses ao espelho e soltou: “Ó, meu Deus, porque me fizeste tão belo?” O Pedras e o Tomé ouviram tudo, desmancharam-se a rir e espalharam a história por toda a gente.
O EFEITO PEDROTO
O que ficou para a história são os golos do Vítor, mas o que muita gente se esquece é que “O Maior” começou no meio-campo e só se tornou ponta de lança com José Maria Pedroto. Em duas épocas com Pedroto (1969/70 e 1970/71) fez 33 golos e disputou o título de melhor marcador com Artur Jorge, do Benfica, em 1971. Ganhou estatuto e um isqueiro de ouro a Pedroto. “Quere-lo? Se marcares dois golos, é teu.”
Naquela tarde de verão de 1970, o Vítor fez o que tinha a fazer ao FC Porto, nas Antas, e estendeu a mão para Pedroto. O que estava prometido era devido, e ele devia estar prometido para algo maior do que Setúbal. Em Lisboa, havia já quem o namoriscasse.
António Simões lembra-se das conversas que havia no Benfica sobre o “homem robusto e atrevido” do Vitória de Setúbal. À época, só entravam portugueses na Luz, e os que lá andavam não eram uns quaisquer: Jordão, Nené, Artur Jorge, Simões, Torres... e Eusébio. Mas o Vítor tinha o que os outros não tinham: era louco o suficiente para pôr a cabeça onde os outros apenas punham o pé. Não tinha medo da dor nem dos adversários.
O clube da Luz ultrapassou o Sporting e contratou-o ao Vitória de Setúbal em 1971, dando em troca José Torres, Matine e Praia — e três mil contos. Na altura, foi a maior transferência de sempre do futebol português.
O Vítor tinha 23 anos e o mundo a seus pés. E a tropa à perna.
O BENFICA
Foi parar ao quartel de Elvas com o Fernando Tomé. Lá, o Vítor portava-se mal, era posto de castigo, e muitas foram as vezes que o Tomé saiu para ir à vida dele e o amigo ficou dentro. O Vítor era insolente e descarado, mas com a tropa não se brinca, e ele lá andou de cabelo à escovinha a contar os dias para se juntar ao Benfica. Mas, quando entrou na Luz, descobriu que ali também não se brincava.
Diz Toni: “O Jimmy Hagan era exigente, e o Vítor ou trabalhava como os outros ou não calçava.”
Jimmy Hagan foi o primeiro treinador do Vítor no Benfica, de 1970 a 1974. Teve outros três: Milorad Pavic, em 1974/75, Mário Wilson, em 1975/76, e John Mortimore, de 1976 a 78. Em sete épocas no Benfica (e ele era benfiquista), o Vítor Baptista fez 150 jogos, marcou 62 golos, conquistou 5 campeonatos e uma Taça de Portugal. Era rijo e potente e habilidoso, e as defesas não davam conta dele — quando ele jogava. E no futuro o Vítor não jogaria sempre nem jogaria sempre bem. Iria lesionar-se, fingir-se lesionado, seria dado como desaparecido.
A carreira do Vítor Baptista começou a ser escrita pelo próprio e por linhas tortas, que ele endireitava sempre que entrava no campo. Lá dentro, o Vítor não precisava nem de conversas nem de palmadinhas nas costas. Era o jogo que o motivava, e ele jogava o jogo pelo jogo, indiferente às porradas que levava ou ao adversário que lhe aparecia pela frente. Ele sabia o que valia e dizia ser “O Maior.” “Mas o que é que tu queres, pá? Sou ‘O Maior’, pá.” Que é como quem diz: vocês ao pé de mim não são nada.
Toni tem uma história ou outra para contar sobre o Vítor Baptista; Simões também. E ambos garantem que o Vítor tinha um ego incontrolável, que jogava e falava como os melhores; e que julgava estar a um passo de ser o segundo Eusébio.
Nos primeiros anos, o Vítor Baptista foi aquilo que ele dizia ser e andou certinho e certeiro com a baliza: em 1971/72 fez 41 jogos e 14 golos; em 72/73, 16 jogos e 6 golos (esteve lesionado); em 73/74, 39 jogos e 11 golos; e em 74/75, 32 jogos e 3 golos. Hagan e Pavic punham-no a avançado ou a médio e ele rendia nos dois lugares. Se fosse sempre assim, o resto era irrelevante. Mas não foi sempre assim.
A DROGA
O Vítor já tinha episódios mal explicados no currículo. Um deles é o corte no pé com uma garrafa (de água, disse ele), na digressão ao Brasil em 1971/72, que o fez aterrar em Lisboa numa cadeira de rodas. Toda a gente achou aquilo estranho, porque a acompanhar a versão dele (há quem defenda que aquilo aconteceu numa rixa com Eusébio) vinha o seu relato incrível em “A Bola”: “O Maior” viu um assalto no aeroporto do Galeão, no Rio, e safou-se arrastando-se de rabo pelo chão com o pé ferido no ar.
Mais incrível ainda foi o facto de a história do pé ter cruzado o Atlântico e aterrado num posto médico do Montijo, onde o irmão Idaliano recebeu tratamento de estrela porque alguém o confundiu com o Vítor. “Eu tinha uma fractura na perna e ele tinha cortado o pé no Brasil. Abriram os corredores todos, as portas, porque pensavam que era o Vítor Baptista que ali estava. ‘Eh, pá, não sou o Vítor Baptista, sou o irmão!’”
Esses eram os dias em que a mãe e os irmãos não lhe punham a vista em cima, apesar de viverem todos na mesma cidade. O Vítor saía de manhã para Lisboa e para o Benfica e regressava tarde para o pé da primeira mulher — e dos amigos. Ele exibia-se perante eles, mostrava-lhes que tinha chegado longe, convidava-os para almoçaradas e jantaradas, para experimentarem o carro novo. Ou a erva nova que comprara.
O Pedro, um dos quatro do bando da Azinhaga do Mal Talhado, chama-lhe ‘parpalhos’ e sabe que Vítor os fumava antes de ir para o Benfica — e antes de o Benfica saber. E o Benfica só ficou a saber na digressão por Angola e Moçambique, no verão de 1974, depois da Revolução de Abril. Numa dessas noites africanas, Simões entrou no quarto que partilhava com o Vítor e sentiu o cheiro a qualquer coisa que ele não sabia o que era. Apalpou a nuvem de fumo que por lá andava. “Eh, pá, ó Vítor, o que é isto? Assim não consigo dormir.”
Abriram as janelas, dormiram no terraço, falaram os dois durante a noite, e na manhã seguinte falaram a três: ele, Simões e Fernando Neves, que era o chefe do departamento de futebol do clube. Aquilo ficou por ali, varrido para debaixo de um tapete. Era o primeiro sinal.
Simões via o Vítor como a família do Vítor o via: um bom rapaz, que não fazia por mal, que era mesmo assim. E também o desculpava como a cunhada o desculpava. Mas não esquecia. Porque é difícil esquecer que no início dos anos 70 houve um futebolista português que comprou um Jaguar e o equipou com um motorista para o guiar de Setúbal a Lisboa só porque sim. E que esse futebolista usava sandálias de tacão alto, jeans rasgados, camisas abertas, brinco, cabelo e barba compridos, quando todos os outros vestiam fato e gravata. E que esse futebolista fora do tempo era o mesmo que trazia couves e batatas da quinta dele para distribuir pela malta.
Simões nunca tinha visto alguém parecido com o Vítor Baptista, a não ser Barry Gibb, dos Bee Gees. Qualquer trapinho lhe assentava bem, e os homens e as mulheres adoravam-no. E ele fazia rir os colegas com aquelas maluqueiras e excentricidades que saíam da cabeça dele — até que aquelas maluqueiras e excentricidades se transformaram em manias. E ninguém atura maníacos.
O Vítor tinha o rei na barriga e achava-se intocável. Em Março de 1975 disse a Mário Wilson que não estava para ser suplente contra o Vitória de Setúbal — o seu Vitória — e mandou o treinador, os colegas e o clube às urtigas. Passaram-se cinco semanas sem que o Vítor fosse visto com a camisola do Benfica. Começou a disparar para a imprensa que ganhava pouco, que queria mais e que era por isso que não treinava — o Vítor dizia que dispensava o treino, porque as outras equipas estavam cheias de coxos a quem podia ganhar ao pé coxinho.
O Benfica pôs-lhe dois processos disciplinares em 1976, e é nesta altura — em que está suspenso e sem salário — que dá a entrevista a “A Bola” em que se diz o “melhor futebolista português”. Havia muitos, mas ele era “O Maior”, e os outros teriam de habituar-se à ideia. E é também nesta altura que é expulso da selecção por chamar “estúpido” ao seleccionador Juca antes do jogo de Portugal com Chipre. Fez apenas 8 jogos e 6 golos pelo Benfica e acabou a época 1976/77 acabado — para renascer no fim do verão. É um padrão na vida do Vítor: ele tentaria ressuscitar várias vezes até ao último fôlego.
O BRINCO
O Vítor Baptista reapareceu porque precisava de dinheiro, e o Benfica aceitou-o de volta porque estava convencido de que o jogador sabia que tinha de trabalhar. Mas a época começou descamisada.
Conta Toni: “A 28 de Setembro de 1977 íamos jogar a Moscovo para a segunda mão da Taça dos Campeões contra o Torpedo. E o Vítor aparece com chinelas de tacão alto, camisa de meia manga branca e calças de ganga — e nós de fato e cobertos para o frio russo. Eu era o capitão e falei com o [treinador] Mortimore, mas ele estava irredutível. O Vítor com aquela roupa não seguiria viagem. Mas lá lhe arranjámos um casaco, e o Mortimore condescendeu.”
Não ficou por ali. À noite, o Vítor disse a Toni que tinha “um toquezinho” e que não estava em condições para jogar e que eles teriam de ganhar sem ele. Naquele jeito gingão e marialva, “O Maior” foi igual a ele próprio: “Eh pá, ó Toni, sei que é difícil sem mim, mas vocês vão ganhar, não te preocupes.” Toni riu-se — não podia fazer mais nada.
A lesão caiu na imprensa, e a imprensa caiu em cima do Vítor. Os jornais não o largaram mais, porque o lado privado começou a rondar o público como um abutre sobre uma presa. Mas o Vítor foi jogando e marcando (21 jogos e 12 golos, segundo melhor marcador da equipa atrás de Nené), abafando os rumores (noitadas, mulheres e droga) com a bola nos pés e as bocas na língua. Ninguém o calava, nada o parava — mas ele era capaz de parar um jogo.
Aconteceu a 12 de Fevereiro de 1978, e Toni diz que foi mais ou menos assim: “Naquele célebre jogo contra o Sporting na Luz, ele faz um golo na baliza sul em que domina a bola com o peito, roda e sem deixar cair a bola faz um golo de bandeira (Botelho era o guarda-redes de Alvalade). Depois, a primeira reacção não foi festejar o golo, mas andar à procura do brinco. Que não era pechisbeque, mas um brinco a sério.”
O dérbi parou enquanto o Vítor, Toni e outros andaram de rabo para o ar à cata do brinco, que se perdeu para sempre na relva da Luz — o dito custara-lhe 12 contos, mais dois do que o prémio de jogo. Dois dias depois, o Vítor assinou pelo Vitória de Setúbal, porque o Benfica não lhe pagava os 650 contos por mês nem lhe dava o Porsche que ele tanto queria. Foi castigado e depois despedido em Abril e regressou à casa de partida por 100 contos por mês, um valor impossível para os de Setúbal, que fizeram uma colecta entre os comerciantes para pagar ao filho pródigo. Em homenagem à cidade, o Vítor decidiu organizar uma tourada... mas esqueceu-se de arranjar os touros. Já para o fim, seria junto à praça de touros que o Vítor andaria a pedir trocos para o vício em dias de corrida.
Em Setúbal, o jogador desbaratou o dinheiro numa quinta no Faralhão, em vivendas, espatifou um Jaguar, pagou bebidas para ele e para os amigos e abriu restaurantes que deram para o torto porque contas não era com ele. Confiava a gestão a amigos de ocasião enquanto se entregava ao jogo e às apostas. A família ficou sempre fora deste círculo.
“Não me lembro de algum dia ele me ter pagado uma cerveja.” O Idaliano não gostou que o Vítor nunca tivesse falado com um dos irmãos para trabalharem com ele. Afinal, eram sangue do mesmo sangue e podiam tê-lo ajudado com o restaurante que ele perdeu à batota. Só havia um caminho para o Vítor Baptista. E esse caminho era sempre a descer.
OUTRA VEZ O VITÓRIA
No Vitória de Setúbal, o feitio e a pinta de estrela pioraram, e o Vítor tornou-se insuportável até para quem gostava dele. Como Jimmy Hagan, treinador que apanhara no Benfica e que agora o treinava em Setúbal. Um dia, farto das estroinices de “O Maior”, Hagan atirou-lhe uma bola à cara. Ele foi buscar uma pedra e disse-lhe: “Agora, faz lá o mesmo com isto, se tiveres coragem.” Já não era o mesmo dentro de campo: lento e preguiçoso. A droga falava e jogava por ele. Quando se encontravam no café, o Vítor dizia ao Fernando Tomé que “queria experimentar tudo”, e iria viver segundo estas palavras até ao fim.
Os amigos de infância Pedro e Jaime acreditam que “ele começou a dar naquilo” no Benfica, com a malta do espetáculo e alguns atletas da Luz, como o Barros. O Pedro conta um episódio num hotel de Lisboa em que o Vítor e outros ter-se-ão metido numa orgia de drogas e “meninas” e que a uma delas lhe queimaram os mamilos com pontas de cigarro — o Benfica abafou a coisa. E em Setúbal viam-no com a cabeça sobre os tampos das mesas das tascas, com prostitutas encostadas à sua volta à espera do que caía da carteira. Por esta altura, já se separara da Mimi, a primeira mulher, que se cansara dele. O Vítor andava livre, em roda livre, e foi então que o Boavista lhe pôs a mão no colarinho e o trouxe para o Bessa, em 1980.
Valentim Loureiro, o presidente que o foi buscar, lembra-se bem do Vítor: “Ele mandava uns petardos... Só tinha visto o Eusébio a fazer aquilo. E no Boavista ele era o craque e gostava de dar bolas a marcar ao Folha. Dava-lhe gozo, aquilo.”
Valentim Loureiro levou-o para o Porto numa carrinha Volvo azul que mais tarde seria do Vítor, porque ele gostara dela. Mas não gostou da mobília da casa na Foz onde o instalaram, pediu outra, e o major lá lhe fez a vontade — se o homem estivesse bem, melhor ficaria o Boavista, que acabou a época em quarto lugar. Mas, sem avisar, o Vítor deixou o Bessa e o Boavista e o Porto. Fê-lo por dinheiro que o major supostamente lhe devia; e por amor a uma rapariga que namorava e que o tinha abandonado para voltar ao sul. A rapariga, a segunda mulher, já tinha um filho, chamado Alexandre, que o Vítor perfilhou. No dia do funeral, o Alexandre apresentou-se a Toni como filho do Vítor.
Mas o segundo regresso a casa durou pouco. António Simões entrou em cena com dólares na mão, porque se vivia o boom do futebol nos EUA. O soccer andava a contratar velhas glórias da Europa, e Simões, que era diretor desportivo do San Jose Earthquakes, convenceu os americanos de que o Vítor Baptista era o tipo certo. E lá foi ele.
“Viu um Corvette branco e não descansou enquanto o clube não lhe deu o carro. O Vítor perdia-se na cidade e vinha atrás do meu automóvel porque queria guiar com o cabelo ao vento. ‘Simões, eh pá, estou na América!’”
A aventura nos States durou pouco, mas o suficiente para deixar clara a mensagem a Bill Foulkes, o treinador — ele era “O Maior”. “Ó Simões, diz ali ao homem que ele deve estar maluco se pensa que vou para a barreira. As estrelas não vão para a barreira.”
Depois dos EUA, o Vítor ficou-se pela margem sul, no Amora (1980/81) e no Montijo (1981/82). Seguiu-se o União de Tomar (1982/83), onde jogou ao lado do amigalhaço Florival, um dos do bando de quatro da infância, e ambos seriam despachados como os Templários pelo Papa Clemente V. O Vítor arrastar-se-ia pelos campos por mais dois anos: no Monte da Caparica (1983/84) e no Estrelas do Faralhão (1984/85), da 2ª distrital de Setúbal, cujas bancadas se enchiam só para o ver. A ideia do Faralhão partira dos setubalenses, que viam na bola a única salvação para o Vítor. Porque estava gordo, estranho, desprendido, largado por ele próprio.
Não resultou. A heroína tomara conta dele, viciado por outra namorada, que o arrastou para as barracas do Bairro da Liberdade. Foi lá que o Tomé, o Jaime e o Pedro o encontraram à vez — e contam que aquilo era desumano e sujo. Falar com o Vítor era como falar para uma porta que não se abre por estar ferrugenta e gasta pelo tempo. E pelo mau uso.
O FIM
O Vítor deixou de falar com os irmãos, com a cunhada e com a mãe. Viviam todos na mesma cidade, mas não conviveram durante os anos de glória do jogador, e o Idaliano diz que o irmão era capaz de atravessar a estrada de um passeio para o outro apenas para não ter de o ouvir.
“Ó Vítor, já foste ver a mãe?” O Vítor só foi ver a mãe quando já não lhe restavam alternativas. Arrumou as trouxas — a roupa que trazia no corpo —, bateu à porta, e Cecília abriu-lhe a casa para o tratar e depois enxotar, porque os vizinhos e o padrasto não o queriam por ali.
A Sofia, a mulher do irmão Eduardo, conta que chegou a dar com um pacote “daquilo” na casa de Cecília e que deitou “aquilo” tudo para o esgoto. Dias depois, uns quantos malandros assaltaram o apartamento da Sofia e do Eduardo na Tobaida e levaram-lhes o ouro e os cheques — fora o Vítor a dar-lhes a dica.
Da casa da mãe, foi para a do Idaliano, mas não demorou muito a sair. O Idaliano não gostou de ser avisado pela mulher de que o Vítor levara com ele um tipo de mau aspecto para o pé dos seus filhos e lá foi “O Maior” para a rua novamente. Voltava, de vez em quando, para pedir umas botas ou um casaco ao irmão, mas esquisito e vaidoso como era ou os recusava ou vendia-os a quem lhe desse mais. “Eu nem me vestia mal e até havia quem dissesse que eu era peneirento. Mas o Vítor, mesmo na desgraça, tinha aquela vaidade. Queria botas de tacão inclinado e pronto. Não havia nada a fazer.”
Vítor meteu-se em más companhias, ficou a dever dinheiro a quem não devia, passou a roubar salões de beleza, autorrádios, carros, vivendas, apartamentos, até mesmo fornos eléctricos. Roubava-os numa rua e tentava vendê-los na seguinte. Foi detido algumas vezes, chegou a ser representado em tribunal por Odete Santos, mas nem a histórica do PCP e uma alegada inimputabilidade por problemas psicológicos o livraram da cadeia — em Janeiro de 1989, o Vítor foi para a prisão em Sintra. Foi lá dentro que tatuou um relógio no pulso, com os ponteiros marcados às 12h15, porque era “a hora da paparoca”, disse ele numa reportagem a “A Bola”. “O Maior” dava autógrafos aos presidiários, tinha a simpatia dos guardas e alimentava a esperança de voltar a ser jogador de futebol. Se perdesse uns quilinhos e se se deixasse das drogas, a coisa ia lá, mas a família (a mãe, o irmão Eduardo e a cunhada Sofia) que o visitou nunca acreditou muito naquilo.
Quando saiu, o Vítor voltou a perder-se no caminho entre Setúbal e o Casal Ventoso, onde ia procurar a dose com o dinheiro que conseguia nos biscates, nos pequenos roubos, nas esmolas. Outras vezes pedia aos amigos de outros tempos para lhe arranjarem comida, doces, roupa, e Toni deu-lhe uns equipamentos do Benfica que ele vendeu para comprar droga. O próprio Pinto da Costa ofereceu-lhe um blusão numa visita do FC Porto a Setúbal, e o Vítor pô-lo logo no prego para o vício. Não havia nada a fazer. O Tomé, o Jaime e o Pedro quiseram organizar jogos de beneficência e de exibição, a ver se o amigo se recompunha, e ele, aqui e ali, aparecia para depois desaparecer. O Vítor andava pelas ruas, gritava, ria-se, falava alto, fugia de quem vinha cobrar as dívidas dos esquemas em que se metia.
A última saída para o labirinto foi um emprego como cantoneiro no Cemitério da Paz, em Setúbal. Ainda hoje estão lá pessoas que trabalharam com ele e que o descrevem como preguiçoso e “relaxadão”, que pouco fazia por ali a não ser varrer o chão. Foi nesse lugar que os jornalistas o apanharam para as suas últimas entrevistas, quando a fala já se arrastava e os dentes perdidos nos maus hábitos escasseavam. Aquele peito largo onde ele matava a bola antes de rematar ainda lá estava, mas o corpo volumoso e duro perdera amplitude.
Voltou à casa da mãe. E morreu.
Na passagem de ano de 1998 para 1999, Vítor Baptista faleceu no hospital para onde foi levado depois de um AVC. O antigo jogador do Benfica sofria de hepatite C, cirrose, e vestia na pele as marcas dos males a que se sujeitou. Apagou-se a estrela, ficou o mito. Maior do que a morte."