"Após uma entrada forte do FC Porto, vergando o adversário à invenção do seu treinador em começar sem avançado, o Benfica reequilibrou as coisas para a segunda parte, na qual entrou a pressionar os médios com tudo. Com golos de Di María e Musa (2-0) e os campeões nacionais conquistaram a Supertaça que teve 12 cartões amarelos e terminou com imagens pouco abonatórias ao futebol em Portugal: após ser expulso já nos descontos, Sérgio Conceição recusou-se a sair do banco durante alguns minutos
Um treinador escolher jogar com um avançado que não é avançado na única posição reservada para um avançado, nunca tendo feito tal coisa nas 54 partidas da época anterior, é, avaliando com lentes apressadas, um pôr-se a jeito de ser acusado de estar a inventar. Não sabemos há quanto tempo Roger Schmidt soube, com certezas, que Gonçalo Ramos deixou-se encantar pelos ares de Paris e iria, ao certo, jogar para o PSG: se foi a dois dias da Supertaça, quando o mundo ficou a saber, ou há mais tempo, nos corredores de casa, portanto dispondo de tempo para pensar, sessões de treino para trabalhar e dinâmicas a matutar que preparassem a equipa para, no fundo, não ter um avançado.
Ou, talvez, Rafa Silva surgir como um ‘falso 9’ enquanto ficavam sentados o mais expectável Petar Musa, grandalhão croata de golos providenciados no passado, vindo do banco, e o improvável Casper Tengstedt, tenha sido uma tentativa de golpe de asa. De um treinador, há meses, amorfo em rasgo nos jogos grandes, quase nada dado a surpresas, a querer surpreender a mordacidade estratégica de Sérgio Conceição, precisamente alguém com olho de falcão para rendez-vous desta exigência. Por arrojo em querer arriscar algo de novo ou desconfiando dos avançados de verdade que lhe sobraram no plantel, a ideia de Roger Schmidt saiu furada durante muito tempo.
Nos primeiros minutos e quando o jogo ainda se espreguiçava, Vlachodimos já esbracejava logo ao segundo pontapé de baliza, abanando os membros para a frente, mandando os jogadores do Benfica avançarem. Queria bater a bola longa e pelo ar porque, pouco antes, a equipa nem da linha de fundo se afastara ao tentar sair a jogar curto. Com o minorca Rafa nas redondezas dos matulões Pepe e Marcano, ao Benfica de pouco servia recorrer a essa via para esquivar-se da pressão alta e intensa feita pelo FC Porto na área adversária. Mas, ao primeiro sinal de vida difícil, a equipa abdicou de tentar bailar com as sombras e atrair os dragões com passes curtos e trocas posicionais.
Com os titulares que tinha e as respetivas características - gente esguia e de agitar com a bola no pé (Di María e Rafa), aliada a tipos de pausa e calma, pensativos em combinações de passe (João Mário e Aursnes) -, convinha aos encarnados tentarem jogar com a pressão do FC Porto em vez de lhe fugirem sem um plano aparente, ou de marrarem contra paredes. Durante mais de 20 minutos, foi isso que aconteceu. Conquistadores de segundas bolas e de todos os duelos, sempre com um olho à esquerda para aproveitar o desamparo de Bah face à permeável lentidão de Di María em fechar espaços, os dragões carregaram pelo lado onde um paradoxo os limitou.
Apesar de geradores das melhores vantagens, em Zaidu e Galeno moram as maiores precipitações a tomar decisões na equipa. O nigeriano rapidamente cedia a cruzamentos tirados longe da área e o brasileiro, das três vezes em que cortou os dribles para o centro e viu a baliza, traiu-se na altura do remate - aos 6’, aos 9’ e antes, nos segundos iniciais, quando o pontapé de saída batido para frente há tantos anos tentado pelo FC Porto ia dando resultado. Sem receções longe da sua baliza que deixassem a equipa respirar nas posses de bola, com os seus jogadores de maior rasgo a serem roubados com facilidade, o Benfica viu Taremi, sozinho na área, desperdiçar a melhor oportunidade da primeira parte (13’), apressando-se sem necessidade a rematar após Pêpê, de novo lateral improvisado, levar as suas ideias ao centro e picar um passe por cima de Otamendi.
Apenas já perto da meia-hora o Benfica sentiu algum oxigénio nos pulmões, prolongando as posses de bola. Vlachodimos lá se atreveu a tocar os pontapés de baliza nos centrais, Bah e Ristic tinham a bola de frente para a área e a equipa lá foi capaz de trocar passes de um lado ao outro, mas muito raramente entrando no nervo do campo. Via-se João Neves a cerrar os dentes com recuperações e reações pós-perda que, depois, lhe davam segundos na bola, mas, engolido pelas mordiscadelas de Eustáquio e Grujic a cada toque que dava, Kökçü era um fantasma quando era a vez do Benfica em pensar jogadas. Quando o Benfica soube o que era ter bola, a equipa nada produzia para a rentabilizar.
A invenção de Schmidt carecia de invenção coletiva no relvado: não se viam trocas posicionais para baralhar uma linha defensiva sem um alvo fixo para marcar, poucos ataques ao espaço nas costas se entremeava com gente a pedir passes no pé e nem Di María, o mais capaz em agitar as coisas com rasgo individual, quando teve um par de ocasiões para fazer acontecer algo, logrou surpreender. Tão pouco os sete cartões amarelos saídos do bolso fácil da arbitragem, acirrando o clima de mais um clássico, foram propriamente uma surpresa.
Muitos menos o seria a entrada de Musa, um avançado para a posição de avançado. Por fim, o Benfica tinha um corpo para o qual olhar entre os de Pepe, Marcano e Grujic se necessitado de jogar mais direto na frente, já havia alguém para fixar um adversário na marcação e deixar espaços onde invenções de passe poderiam entrar. Depois, deu-se a provar do próprio veneno quando o FC Porto reapareceu com a intenção de dar um engodo a morder.
Porque, na segunda parte, os dragões continuaram a querer usar os pés de Diogo Costa para iniciarem jogadas com passes curtos, tentando chamar adversários a pressionarem para aproveitarem a vantagem numérica do guarda-redes. Lá foi o Benfica, subindo em bloco e sendo ‘agressivo’ a cair em cima de qualquer ação na bola dos adversários. Aos poucos, a balança dos duelos equilibrou-se e a disputa de segundas bolas, onde tanto os dragões apontam a sua contra-pressão para criarem situações de perigo, sorriu aos campeões nacionais.
Na roda dentada da luta a meio-campo, eram agora Eustáquio e Grujic a terem as suas costas massacradas por João Neves e Kökçü, muito mais ativos e imediatos a reagirem. O Benfica ainda tardou, depois, a tirar proveito das bolas que roubava na metade do campo adversária. Abusando de Di María nos primeiros passes após recuperar a bola - é evidente a serventia de levar o volante das decisões a quem mais sabe da poda -, os jogadores pouco se moviam diante dela para se darem como opções que ligassem os passes rápidos que já eram constantemente tentados pela equipa. Com o FC Porto a sofrer na pessoa dos seus médios, em quem pressão do Benfica convidava a entrarem passes para, depois, os impedir de se virarem com as receções de bola, a tendência da final mudou.
E foi com um Kökçü a morder o costado de Eustáquio, roubando-o e logo tocando um passe para lançar Di María na área, que os encarnados marcaram (61’), a mordacidade da pressão antes da fineza da execução do argentino, cujo primeiro toque o aprontou a curvar o remate no segundo - e beneficiar da palmada falhada de Diogo Costa, que previu a execução do campeão do mundo, mas falhou na abordagem à bola. A mudança de postura da equipa de Roger Schmidt resultara, a desistência do treinador em inventar também.
A pressão consertada do Benfica não esmoreceu, os jogadores do FC Porto não arranjaram soluções para a contornar, a inação nos bancos agora assentavam em Sérgio Conceição e as perdas de bola do FC Porto no seu meio-campo continuaram, sendo que uma, em especial, foi reclamada quando Petar Musa foi saltar com Pepe e Marcano para reforçar o caos - Rafa captou a sobra, cruzou rasteiro para a área e o avançado que é mesmo avançado, nas costas de quem um falso avançado já se mostrava, foi o avançado que marcou (68’). Enquanto isso, Di María pincelava o campo com pequenos toques de uma técnica superior a estes palcos.
Ao contrário da época passada, do banco Roger Schmidt soube mexer para ir buscar benefícios e manter o ascendente da equipa em campo. As entradas de Florentino Luís e Chiquinho mantiveram o andamento da pressão sobre os médios do FC Porto, que só esperneou com a vida que lhe fugiu, em parte, pelo eclipse de Otávio no jogo (não logrou socorrer os médios, ao centro, quando a equipa soluçava na saída de bola) quando Gonçalo Borges entrou para dar esticões em algumas jogadas, poucas. Enquanto o ocaso coletivo dos dragões se agudizava, Di María rematava outra vez, Chiquinho tentava o seu e Musa, nas barbas de Diogo Costa, arrancou do guarda-redes a parada da noite.
De perigoso, o FC Porto somente teve um espantoso remate de Galeno, atirando com estrondo a bola para o ângulo superior da baliza numa bola reclamada, no ar, pelo miúdo Gonçalo Borges. O êxtase tardio, aos 90’+ 4, foi de pouca dura, mais um exemplo de um jogo emocionante mais do que aliciante, farto em sons de rebentamento de fogo de artifício do que propriamente espetáculo visual para agradar à vista. Por essa altura, já Pepe vira um segundo cartão amarelo por uma joelhada no traseiro de Jurásek e fora expulso. E pouco demorou até outra expulsão atirar uma âncora para prender esta Supertaça a imagens pouco abonatórias para o futebol português.
Sérgio Conceição protestou, vocal e gestualmente, contra uma decisão do árbitro, que lhe mostrou um cartão vermelho. Foi aos 90’+6. Durante os cinco minutos seguintes, o treinador do FC Porto fez finca-pé, disse “não saio” e permaneceu diante do banco de suplentes. De repente, no raiar de uma nova época, a Supertaça dos 12 cartões amarelos, das tantas faltas, quase caricaturava o futebol português: viram-se agentes da PSP a dirigirem-se para o local e Luís Godinho, homem do apito, a pedir ao capitão Iván Marcano para ir entregar um recado ao seu treinador, presumivelmente pedindo-lhe que acatasse a ordem de expulsão. E Conceição, decidido, não arredou pé até o relógio marcar 111 minutos de não lhe chamemos jogo, mas de um acontecimento em Aveiro.
No que ao futebol diz respeito, o Benfica conquistaria a 9.ª Supertaça de Portugal para o seu museu, ainda longe das 23 que moram nas vitrines do FC Porto. O intangível, de momento, importará mais aos encarnados. Pela primeira vez desde a convivência com Roger Schmidt, os encarnados lograram sobrepor-se, sem espinhas, aos dragões que viveram aos solavancos quando o adversário corrigiu a sua errónea invenção inicial em ter Rafa como ‘falso 9’. O futebol é isto, e não deveria ser o resto que se viu."