"Entre os habituais comentaristas do futebol, na TV, férteis e imaginosos compiladores cénicos de “faits divers”, encontram-se também perfeitos efabuladores da intriga; exemplos de uma vida emotiva e febril, ao serviço (dizem eles) de um incomparável amor clubista; e ainda impulsivos pacientes de uma “clubite” (terrível patologia) em último grau. Portugal é, com toda a certeza, o país do “orbe terráqueo” onde mais futebol se discute, na televisão e na rádio e nas redes sociais e nos jornais. E nos barbeiros, nas repartições públicas, nos consultórios dos dentistas, nos cafés, nos restaurantes, etc., etc. Quer isto dizer que adormecemos e acordamos ao som das sentenças de convictos e conceituosos sábios, no que ao futebol diz respeito. Por vezes, até o “bacalhau à Gomes de Sá” é mais futebol que bacalhau. O Aristóteles dizia que o homem é um “animal político”. Em Portugal, não - em Portugal, quase todos os portugueses (não há regra, sem excepção) são verdadeiros “futebólogos”, ou “futebologistas”, ou seja, especialistas na “ciência do futebol”. O português, de facto, tornou-se um “futebólogo”, ou um “futebologista”, no sentido mais insociável, mais irritante, mais faccioso, que estas duas palavras possuem. É que, porque sabem apontar os erros “clamorosos” dos senhores árbitros, porque sabem que existe o 4x3x3, o 4x4x2 , o 3x5x2, o 4x2x3x1 e o 4x1x3x2, julgam-se entre os mais indiscutíveis talentos da nossa “pós-modernidade” e, emotivos até à raiz dos cabelos, não temem qualquer viva, truculenta e sanguínea discussão sobre a técnica do Cristiano Ronaldo e do Messi, ou a táctica do José Mourinho e do Guardiola, mesmo com um conceituado treinador de futebol. Pudessem eles ostentar as vernáculas qualidades de um prosador de eleição e voltaríamos a escutar as soberbas sonoridades da prosa camiliana…
Só que, para cientista, não chega ser homem de letras. E assim, porque também não são homens de letras, e de futebol não passam da expressão rápida e rude de uma grande ignorância, já cansa a incessante polémica, quero eu dizer: tanto clubismo cego, tanta competição sem valores. Por força das caricaturas inolvidáveis de Eça de Queirós, a sociedade portuguesa começou a rir-se de si mesma. Mas estes tristes comentaristas são demasiado depressivos e amargos, para acompanharem o que dizem de uma gargalhada sadia. Demais, julgam-se magistralmente versados, na explicação dos golos do Jonas e do Bas Dost, dos passes do Pizzi e do Bruno Fernandes, na compreensão da inteligência táctica do Herrera e da pujança do Marega. Considero o desporto (como já o disse inúmeras vezes) com realce para o futebol, o espectáculo de maior magia no mundo contemporâneo. Chega a ser um instrumento precioso, em prol do que mais nobre a humanidade tem. Dói-me, porque muito o respeito, que tanta gente pretenda fazer do “desporto-rei” um instrumento mesquinho e grosseiro, ao serviço doutros interesses que não se confundem com a beleza moral dos ideais desportivos. E dói-me ainda (a mim que, nas décadas de 30 e 40, fiz do Estádio “José Manuel Soares”, ou das Salésias, a minha segunda casa) que possam qualificar-se, como desportistas, pessoas que tomaram de assalto o dirigismo desportivo, para servir-se, unicamente para servir-se, do desporto da “sociedade do espetáculo”. Perdeu assim o desporto português os seus grandes modelos, como o Dr. Salazar Carreira, como o Prof. Mário Moniz Pereira, como o Dr. Armando Rocha, como o Prof. Noronha Feyo, como o Prof. Celestino Marques Pereira, como o Prof. Leal d’Oliveira, como outros nomes ilustres, que hoje são sombras, para dar lugar a outros, que a vida remoça e fecunda e… que serão sombras também!
Se é verdade o que me vêm dizendo alguns estudiosos, foi a minha tese de doutoramento, intitulada “Para uma epistemologia da motricidade humana”, a primeira investigação que se conhece, em língua portuguesa, sobre “epistemologia do desporto”. E com um objectivo primeiro: tentar provar que a Ciência da Motricidade Humana, onde se integram o Desporto, a Dança, a Ergonomia, a Reabilitação e a Motricidade de todas as idades, é uma nova ciência hermenêutico-humana e que os especialistas que a estudam e praticam são os chamados “professores de educação física”. E disse mais: “A Ciência da Motricidade Humana pode perfeitamente situar-se na re-orientação radical da Universidade, denunciando o postulado da primazia da razão, onde não há lugar para o amor, para a festa, para a poesia, para o jogo, para a corporeidade livre e libertadora; o postulado do progresso unicamente definido por critérios económicos, sem referência a um projecto fundamental e transcendente de vida; o postulado da primazia do rendimento, que origina o homem unidimensional, servo obediente dos anseios incontroláveis do Poder e do Ter. E simultaneamente anunciando: o postulado da transcendência, como realização do ser carente, que é o homem, como princípio de desfatalização da História; o postulado da relatividade, como postulado profético, dado que nada do que se faz ou do que se pensa é definitivo, inscreve-se numa tarefa sempre por acabar; postulado da motricidade, como abertura à relação e à esperança, já que todo o acto, verdadeiramente humano, é fruto da liberdade. Assim, provar-se que a CMH é uma nova ciência do homem, ou os que nelas licenciados são especialistas em tudo o que na motricidade é ciência e valor – equivale à tentativa de resposta a um desafio do tempo, ganha a dimensão de uma nova filosofia: não mais a filosofia do ser e do logos, mas a filosofia do projecto e da relação” (p. 158).
Quero eu dizer que, entre outras coisas, o Desporto tem a sua ciência e o seu método científico e os seus especialistas e que não pode discutir-se, portanto, só com emotividade e muito “amor ao clube”. É portanto insustentável, ou ridículo mesmo, defender, no conhecimento científico, um relativismo gnosiológico, ou reafirmar que uma ciência se possa resumir cabalmente ao nível linguístico, a… conversa. Uma inteligência profunda, ao mesmo tempo teórica e prática, dominada pelo bom senso, sabe que assim não é. O que se vê e ouve e lê, muitíssimas vezes, não passa de puro oportunismo, próprio de espíritos acanhados, estreitos e aferrados a uma concepção do futebol-espectáculo já gasta e desacreditada. É preciso repensar o futebol, tendo em conta a complexidade da ciência actual. E não esquecendo que se trata de um fenómeno social, de incomparável popularidade. Os perdedores na vida precisam de identificar-se com os vitoriosos, nos estádios, para poderem superar as frustrações de todos os dias. Jorge Araújo, em livro que se aconselha vivamente, “A busca da Excelência”, escreve: “Para ser treinador, não basta saber. É fundamental saber transmitir, ser capaz de inspirar e mobilizar a motivação daqueles que dirige (…). Controlar a ansiedade, ser paciente (…). E mais importante a relação a estabelecer com os formandos, o estilo de comunicação que utiliza, que muitas vezes a matéria que aborda (…). Daí a necessidade de preocupação com aqueles que treinamos (…). Partindo sempre deles e não de nós” (pp. 105/106). De facto (vou repetir-me) não há jogos, há pessoas que jogam. E, se o humano é o infinitamente complexo, para debater um problema, discutir um método, esclarecer uma dúvida, no futebol, há necessidade de muito mais do que formular juízos apressados, por ignorância, inveja, antipatia e despeito. E portanto, silenciando sempre o essencial…"