"Pela primeira vez desde Ted Smith, o Benfica tinha um inglês como treinador. E as coisas começavam mal. À 11.ª jornada, via o Sporting com seis pontos de avanço. Calado demitira-se. O dr. Borges Coutinho mantinha a calma em mar encapelado.
Não haverá, em momento algum, forma de os clubes não serem o espelho da alma daqueles que neles trabalham.
Esta semana lembrei-me de uma figura fechada, tranquila, às vezes com um toque próprio de uma antipatia de ferro: Hagan, Jimmy Hagan.
Depois dos 103 golos marcados pelo Benfica neste campeonato, era impossível não recordar Hagan. E, curiosamente, Hagan nunca foi, apesar dos seus três títulos consecutivos de campeão nacional, uma figura consensual no Benfica.
Recordo-me bem da sua chegada. A verdade era indubitável: nunca treinara uma grande clube em Inglaterra, apenas o Petersorough e o West Bromwich Albion.
Mas o Benfica convulsionava-se. José Augusto terminara a época como técnico interino. Vencera a Taça de Portugal. Consolo pequeno para tão gigantescas ambições.
O campeonato começou mal para o inglês: vitória de aflitos sobre a CUF (1-0), empate em Alvalade, uma dolorosa derrota frente ao Farense. O veredicto do público não dava direito a apelo! Culpado? Hagan! «Morbidamente virado para a preparação física, desconhecendo a importância do estudo táctico, entranhado na mentalidade inglesa, não falando a língua do país onde ganhava a vida... Os jogadores contrariados porque não tinham prelecções, porque se sentiam desacompanhados, porque eram eles próprios que se orientavam em campo. Hagan apontado a dedo». Palavras da jornalistas Edite Soeiro, numa longa reportagem sobre o «Caso Hagan».
A tranquilidade de Borges Coutinho
As brechas começaram a abrir. Francisco Calado, o Chefe do Departamento de Futebol demitiu-se. De forma irredutível! E Calado era um peso forte dentro do clube. Não fez grandes declarações na hora da saída. Limitou-se a dizer, com a simplicidade que lhe era característica, que o técnico inglês não tinha capacidade nem condições para a exigência do lugar. E que já estava pelas orelhas com factos inexplicáveis: jogadores proibidos de falar e censura prévia a tudo o que fossem dizer publicamente.
Borges Coutinho era o presidente. Caíam sobre os seus ombros todas as responsabilidades. Era um homem sem dúvidas: «Que eu saiba, só houve um treinador inglês anterior a este que trabalhou no Benfica e deu magníficas provas. Evidentemente que se eu não achasse que Hagan não era a pessoa indicada para estar à frente do futebol benfiquista, já o teria tirado».
Falava de Ted Smith. O homem que levou o Benfica à vitória na Taça Latina de 1950.
Borges Coutinho sempre foi tido como alguém que não se precipitava e que tinha uma habilidade especial para resolver as questões mais bicudas. Em termos públicos, não fugiu às dificuldades que o Benfica estava a sofrer num campeonato que acabou por ter muitas similaridades com este que agora chegou ao fim. Falava com a sensibilidade de quem se debruçara seriamente sobre o que estava a acontecer no clube: «Evidentemente que não penso ser uma vantagem o facto de o treinador não falar português. Mas se me perguntarem se é um inconveniente, também afirmarei que não é. O Benfica tem um treinador-adjunto que é o José Augusto. Ele e o Sr. Hagan dão-se bem e conseguem entender-se numa mistura de inglês e português. Não há dúvidas que se entendem um ao outro. Aliás, o próprio Hagan consegue conversar com os jogadores individualmente, estando a par de todos os problemas. E tem resolvido alguns da melhor maneira».
Talvez optimismo a mais para quem via o Sporting adiantar-se na classificação. «Sinceramente não me sinto preocupado. De forma alguma. Segundo o meu critério, o sr. Hagan corrige um ou outro defeito em um ou outro jogador que não esteja a actuar segundo as indicações dadas por ele. Se me dão licença, sobre tácticas não me pronuncio. Acho que é o que deviam fazer todos aqueles que não percebem do assunto. Não sou um táctico. Não sou um técnico do futebol. O sr. Hagan está aí para dar um plano de jogo a todos os membros da equipa e tenho toda a confiança nele, como é óbvio. À 11.ª jornada estamos a 6 pontos do Sporting, mas direi que a principal razão para tal está nas lesões que nos assoberbam, como as de Torres, Matine, Eusébio, Simões e um ou outro caso. Recordo também que estamos e, plano processo de remodelação dos quadros da nossa equipa. Só há razões para as coisas evoluíram positivamente».
Tinha razão... Como veremos.
(continua na próxima edição)"
Afonso de Melo, in O Benfica