"De afogado na Baía à deriva no Amazonas, Portugal perdeu-se com tanta água que foi metendo. Voará pelos céus do Brasil com o destino marcado de Lisboa.
MANAUS - Nós céus do Brasil cruza-se o Mundo. Holandeses voam para Porto Alegre, Croatas para o Recife; Gregos para Belo Horizonte e Espanhóis e Ingleses a caminho de casa. Portugal perde-se em aeroportos, de Campinas a Salvador, de Salvador a Manaus, de Manaus a Brasília. Mas não há salvador. Afogado na Baía; à deriva do Amazonas. Tanta água. Tanta água metida pela defesa portuguesa. Barco de dois canos ao fundo, como se diria na saudosa batalha naval praticada às escondidas da mestra palmatória no banco da escola. Que sobrou, e durante tão pouco tempo? Um submarino? E cuidado! Em Portugal, lá na terra do patrício, submarino é palavra proibida, ou pelo menos devia ser.
Em homenagem ao Chico (esse mesmo, o Buarque) e aos 70 anos que acabou de cumprir, vou esbulhar mais alguma da sua imaginação para tapar os buracos da minha. «Vai meu irmão, pega esse avião...», podíamos quase ouvi-lo cantar depois de mais uma vez o portugalzinho do nosso descontentamento exibir as tão evidentes fraquezas que mesmo que quisesse não conseguia esconder. Não, não adianta «jogar pedra na Geni». Nem no Ronaldo, nem no Paulo Bento, nem em ninguém. O Destino marca a hora, mesmo quando há cinco horas de diferença de Lisboa e os termómetros marcam 29.º às nove da noite enquanto comemos costela de tambaqui - sim, costelinha mesmo, ainda que tanbaqui seja peixe grandão lá das águas do Rio Negro e do Solimões. O Destino marcou cedo a hora da Equipa-de-todos-nós, se calhar cada mais menos de nós.
«Pede perdão
Pela omissão
Um tanto forçada».
Bem, aí lá estarei um pouco mais de acordo vendo a festa alheia e a sorumbática passagem lusitana por estas praias e rios que viram chegar as caravelas agora transformadas em canoas frágeis que andam à deriva nas curvas da vida.
Antecipação e falta dela
Escrever por antecipação não é muito do meu gosto. Nunca tive jeito para central. Antecipar não é o meu forte. Aliás também não tem sido o forte dos nossos centrais, muito mais antecipados do que antecipadores, e no caso de Pepe até sobretudo precipitado. Mas é a vida. O ditame do fecho do jornal que me obriga a escrever com Salvador e Manaus na memória fresquinha como um choque de Brahma, mas ainda sem Brasília.
O irmão meio avôzinho dos brasileiros já pegou novo avião, se calhar no momento em que o aqui rabisco chega às mãos do pacientíssimo leitor que faz o danado favor de me ler, em direcção a Lisboa onde voltarão a carpir-se mágoas dos Mundias que continuam a ser-nos ingratos.
A bola é uma mulher. Redondinha, mas feminina por demais. Com requebro de menina baiana.
«Menina baiana tem um jeito que Deus dá
Menina baiana tem defeito
Que também que Deus dá».
É, por isso, caprichosa. Adora quem a trata bem e despreza que a trata mal. Temos tratado mal a menina, não é? Por isso, não há pose de machão português que nos faça seduzi-la. E a bola não é mulher que se compre, como qualquer periguete seresteira, ou como aquela velhinha simpática que se instalava à porta do hotel da selecção oferecendo serviços carinhosos a preços convidativos. Azar o dela, que de convidativa nada tinha. Nem sempre o Altíssimo é justo com os seus filhos...
«Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão de correr assim...»
Espera! Espera! Aguenta ái um pouco, amigo Chico. Correr assim? Escreveste correr assim? Mas correr, como? Correr, correm os outros. Nós deixamos correr o marfim, isso sim. E a segunda sílaba de marfim é simplesmente fim.
«Ritmo morno
De andar na areia
De água doente, de alagados», rimava Carlos Drummond de Andrade, poeta maior da língua que é di cá e di lá, com o Atlântico pelo meio e, como dizia o Caetano. «Uma ilha rodeada pelo espanhol por todo o lado». Foi esse o nosso ritmo, desde o primeiro de todos os minutos. Corram o filme para trás - tão para trás com aquele exagero de passes sempre para trás - e vejam a cara dos nossos rapazes: monco caído; cada golo sofrido é uma facada que penetra entra a terceira e a quarta costela, rasgando por dentro, trucidando a carne e a alma como facão de gaúcho de rodízio. Quem levanta a cabeça? Quem dá um grito, seja ele do Ipiranga ou não? Drummond outra vez:
«O ritmo do chumbo (e o peso)
Da lesma da câmara lenta
Do homem dentro do pesadelo».
Era isso mesmo que eu queira dizer: o pesadelo. Obrigado Carlos pela sua infinita habilidade de escrever tão melhor do que eu.
Fecha-se a noite. Na esplanada do «Canto da Peixada» a costela de tambuqui - isso mesmo, costela, que peixe também pode ter costela - retempera desilusões. Daqui a pouco há avião para pegar. Pelos céus do Brasil onde se cruzam países felizes e países tristes. Onde estão os dias alegres do País Triste?
A Amazónia fica longe, longe. A pouco e pouco vai-se entrando pela selva e pelos labirintos do Rio Negro e do Solimões. Quem encontrará o caminho de volta? Dá pena ver Cristiano Ronaldo perdido no labirinto confuso de um Futebol sem duende. Quando eu era garoto, nos documentários que antecediam os filmes que passavam no Condes ou no Paris, havia uma voz grossa de um brasileiro que comentava: «Essa é a Floresta Amazónica, onde jamais a mão do homi pôs o pé.!» Pois, aqui também Portugal não o pé. Que avião pegará agora? Há um casal mudo sentado na beira do passeio. Camisolas vermelhas: cinco quinas azuis. O Chico é que sabia:
«Mas não diga nada
Que me viu chorando
E prós da pesada
Diz que vou levando».
Olhem, se puder ainda mando uma notícia boa..."
Afonso de Melo, in O Benfica