"Comecemos com um pequeno exercício de memória: quando o actual presidente do Sporting Clube de Portugal conquistou nas urnas tão honrosa posição, cumprindo assim um sonho de criança, o primeiro alvo que seleccionou para sobre ele descarregar o seu viperino arsenal de setas, bem venenosas, diga-se, foi o presidente do Futebol Clube do Porto - chamou-lhe de tudo!
Estranho? Só para quem andar distraído sobre o vaivém das motivações do mundo da bola: ataca-se sempre aquele que se percepciona como a mais séria ameaça – e o FCP, tendo em conta o seu recente histórico, naquela altura, ainda era visto como o mais temível detentor de poder.
Ora, todos pudemos, entretanto, ver e acompanhar com ternurenta complacência, o namoro, um verdadeiro noivado, que culminou, há dias, com mediático casamento entre estas duas grandes instituições desportivas, casamento que ironicamente teve um convidado de honra, um convidado que, de tão odiado, se tornou omnipresente: o incontornável e obsidiante Benfica. Sim, o clube encarnado, com seu crescente e avassalador domínio, não foi só o sibilino e ínvio convidado, mas a única razão de tão espúrias núpcias. Aos consortes uni-os o ódio e o medo sob as ígneas cores do vermelho. Ontem, era cobras e lagartos do clube nortenho, aparentemente viciado nos sabores da vitória, para agora se engolirem todos os sapos de décadas. Em nome de quê? Do medo vermelho que conjunturalmente os une!
Uma certeza estatística: não há no país, nem, se calhar, no mundo uma única pessoa que não aponte o verdadeiro móbil de tão cálido enlace. Toda a minha gente sabe e o diz à boca cheia (vox populi, vox Dei): é um casamento de conveniência. E os casamentos de conveniência não são pautados pelo amor, mas pelo maquiavélico critério do mal menor.
Se, com Pierre Clastres, fizermos uma breve deambulação pela “arquelogia da violência”, rapidamente nos apercebemos do que verdadeiramente está na gênese de qualquer aliança: o sentimento de vulnerabilidade face a uma ameaça externa, percebida como capaz (credibilidade) de dissolver o núcleo identitário de qualquer um dos aliados. Ou seja, ela baseia-se num pacto segundo o qual cada um se reconhece ser, sozinho, incapaz de fazer frente ao inimigo eleito como ameaça preferencial e prioritária. Ou seja, uma aliança traduz, a fortiori, um aflito expediente de sobrevivência.
É por isso que este casamento de aflitos, com namoro à porta dos gabinetes de Gomes e de Proença, se precipitou com a vitoriosa cavalgada (ou voo?) do clube da Luz, confirmando de forma categórica uma hegemonia que se vinha configurando: foi um casamento de aflitos e à pressa...
Nos casamentos à séria (que os há cada vez menos!), os nubentes e os convidados se manifestam contentes e felizes: neste, só um conviva, porém, tinha verdadeiros motivos para sorrir e que, por ironia, foi o único que não recebeu convite – o Benfica!
Insisto na atitude desesperada de preservação da coesão interna face à imagem antitética de um inimigo, quase sempre imaginário, ou provocado, como aconteceu com o General Leopoldo Galtieri, que, a braços com grave crise interna, mandou, em 2 de Abril de 1982, as tropas argentinas ocuparem as Ilhas Malvinas, sobre as quais agitou um histórico direito de jurisdição, desviando, deste modo, o foco nacional para um inimigo, neste caso, a Inglaterra, que ocupa aqueles territórios desde 1833.
Quando um líder enfrenta oposição interna, o truque clássico, conforme o demonstrou Musafer Sherif, é inventar ou provocar um inimigo externo. E, neste sentido, este recente casamento entre leões e dragões, além de gritar os quatro ventos a temida superioridade benfiquista, denuncia também, com flagrante nitidez, a actual tibieza das lideranças de cada um desses clubes. Cada um dos líderes em causa parece colocar num inimigo externo a verdadeira e única razão da sua força.
E isto entronca numa outra dolorosa verificação que é também uma profecia: verão fugir para a Águia tantos mais títulos quanto mais insistirem em disputá-los exclusivamente contra esse adversário, assim convertido em inimigo devorador.
A motivação traz sucesso sempre e quando ela se alimentar do íntimo de cada agente desportivo e não sacudida pelos ventos do circunstancialismo externo e conjuntural.
Já o afirmei diversas vezes: o que gera o sucesso é só uma motivação endógena, nunca uma motivação exógena.
Porque aos casamentos de conveniência espera-os um mesmo sim, sempre: o divórcio pela certa.
Este casamento em concreto durará só o tempo que demorar o poder a mudar de mãos.
Sim, mais de mãos do que de pés, apesar de ser sobretudo com estes que a bola se joga!"