"«Diverti-me e diverti os outros»
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- A decisão de terminar a carreira é sempre um momento muito duro para qualquer jogador. Como foi consigo?
- Foi um bocado difícil. Depois de vinte anos a jogar como profissional, nunca poderia ser fácil. Mas foi uma decisão vinda do coração. Terminei estes cinco meses em Malta, diverti-me muito, as pessoas gostaram muito de mim, fizemos história ao passar a primeira pré-eliminatória da Liga Europa e ao vencer o West Ham na segunda pré-eliminatória, tendo sido eliminados apenas no desempate por grandes penalidades. Além disso, marquei golos (n.d.r. nove em 14 jogos). Tomei a decisão de forma consciente, até porque em Junho faço 37 anos e, por isso, agora estava na hora de me dedicar à minha família.
- Teve a ver mais com o desejo de estar com a família ou com limitações físicas?
- Não, fisicamente estava muito bem, estava a jogar e não tive problemas este ano. Eu tinha regressado a Lecce (n.d.r. em 2013), à minha casa, à minha cidade, porque queria jogar ali. Depois aconteceram muitas coisas que me levaram a ter uma experiência noutro país, mas agora entendi que era a altura certa de terminar. Quero dedicar-me à minha família, quero passar mais tempo com eles. Depois, mais à frente, vamos ver o que vai acontecer. Posso fazer mais coisas ligadas ao futebol, mas agora quero estar tranquilo com a minha família.
- Com o grande talento que sempre lhe foi apontado, acha que podia ter tido uma carreira melhor? Chegou a ser comparado a Romário e Maradona...
- Penso que podia ter feito algo mais, sem dúvida, mas o meu carácter... Bom, cada pessoa tem o seu carácter. O meu levou-me a ser assim. Mas aos meus filhos posso dizer com orgulho que sempre disse o que pensei a toda a gente, nunca me escondi atrás de ninguém. Podia ter feito algo mais, mas estou contente e honrado com aquilo que alcancei, sem dúvida alguma. Fiz aquilo que sempre desejei. Tive outras propostas, podia ter ganho mais dinheiro, mas tive objectivos em cada equipa que estive. No Benfica, na Juventus, no Palermo... Muitos deles consegui alcança-los, outros nem por isso. A coisa que mais prazer me dá é o facto de, em qualquer dessas equipas, ninguém poder dizer que não dei cem por cento de mim.
- As lesões foram um problema?
- Eu praticamente nunca tive lesões graves na minha carreira. Só uma operação ao joelho. Nos últimos anos tive alguns problemas numa coxa, mas nunca lesões graves. Desse aspecto não me posso queixar.
- Está, portanto, feliz e orgulhoso com o trajecto que teve.
- Sim, estou feliz e orgulhoso por tudo o que alcancei. E isso é demonstrado pelas pessoas dos clubes em que joguei e que ainda gostam de mim. As pessoas do Benfica ainda me demonstram isso. O simples facto de uma instituição com essa grandeza me ter agradecido no seu site oficial, quando deixei de jogar, é algo que me enche de orgulho. Vou agradecer para sempre ao Benfica e a todos no clube. Desde o presidente e a Direcção aos adeptos e aos amigos que lá tenho, como o Nuno Gomes e o Rui Costa. Foi uma grande honra ali, acredite. e depois estou orgulhoso por tudo o que alcancei no geral, ao longo da carreira. Tornei-me numa lenda de uma cidade como Palermo, por isso para mim está bom assim. Estou satisfeito.
- Tem a consciência de que era considerado um jogador especial, um fora-de-série?
- Eu? (risos) Essas sempre foram as minhas características... Que posso dizer.. Muitas vezes fazia jogadas para o público, para os adeptos, porque eu divertia-me tanto a jogar no meio de uma estrada como num estádio cheio. Porque para mim o futebol era um divertimento. Por isso, tentava também divertir as pessoas que me iam ver, além de me divertir a mim próprio. Com certeza que nesse sentido era um jogador diferente em relação aos outros.
- O que faz agora no tempo livre e quais os planos para o futuro?
- Neste momento estou completamente fora dela. Levo os meus filhos à escola, passeio com a minha mulher, levo a meu filho Diego ao futebol e fico a vê-lo jogar, porque ele está na minha academia. A minha filha vai fazer patinagem. Estou completamente dedicado à família, portanto, agora preciso de estar com eles. Tenho muitos planos para o futuro, entre os quais continuar, sem dúvida, com a minha academia de futebol, que é filial da Roma (n.d.r. Scuola Calcio ASD Fabrizio Miccoli, criada em 2010 em San Donato di Lecce). Temos muitos rapazes bons e capazes de fazer aquilo que eu fiz.
- Pensa que pode ser treinador no futuro?
- Penso que não. Gostaria de ser director desportivo. Tenho também uma excelente relação com o meu agente, por isso, no futuro até pode existir a possibilidade de trabalharmos em conjunto e de me tornar agente também. Tenho diversas coisas em mente, vários programas. Vamos ver. Tenho tempo para fazer um pouco de tudo. Mais à frente vamos ver o que vai acontecer.
- Qual foi o melhor jogador com quem jogou?
- Joguei com tantos jogadores de qualidade... Na Juventus, no Benfica, no Palermo... O Rui Costa, para mim, era um fenómeno. Tal como eram o Thuram, o Montero. Qualquer um deles me deu alguma coisa. Não posso escolher um porque joguei com muitos, mas todos os campeões me fizeram aprender muitas coisas. E também tive sorte de jogar com jogadores jovens, aos quais penso tive o privilégio de ensinar algo, como o Dybala, o Cavani, o Pastore... Por isso, repito, tive a sorte de jogar com muitos campeões, não posso escolher um porque todos estes que eu disse, entre outros, são importantes.
- Se pudesse, mudaria alguma coisa na sua carreira?
- Se calhar sim. Quando estava na Juventus, provavelmente as coisas poderiam ter acontecido de forma diferente. Mas eu tenho um carácter muito especial, não consigo fingir, não consigo guardar aquilo que penso. Todos as coisas que para mim não estavam bem, disse-as. Se tivesse tido um pouco mais de paciência na Juventus, podia ter lá ficado mais alguns anos. É a única coisa que se calhar mudaria.
- Qual foi o ponto mais alto da sua carreira?
- O ponto mais alto foi, como para qualquer jogador, quando cheguei à selecção nacional. Foi seguramente esse. E depois tive vários marcos importantes: quando cheguei aos 100 golos na série A, quando me tornei no melhor marcador de sempre do Palermo e no mais importante jogador da história do clube. Entre outros episódios especiais, mas a chegada à selecção foi o ponto mais alto.
- Algum sonho ficou por realizar?
- Sim, vencer o campeonato italiano com alguma equipa e vencer o campeonato português pelo Benfica. Essa é uma espécie de espinha que fica encravada. Acabei por nunca ser campeão, mas também tive muitas coisas bonitas.
«O Benfica foi a experiência mais bonita da minha carreira»
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- Foram só dois anos em Portugal, é verdade, entre 2005 e 2007, mas pareceram mais. O Benfica foi o grande amor da sua carreira?
- Sim, o Benfica, para mim, significa muito. Fui muito feliz e aprendi muitas coisas lá, foi uma fase muito importante da minha carreira. Foi, se calhar, a experiência mais bonita que tive. Sem retirar importância aos outros clubes, claro, porque repito, o Palermo e o Lecce estão no meu coração. Lecce porque foi onde nasci. Lecce é tudo para mim. E Palermo foi onde me tornei jogador. Mas o Benfica foi a experiência mais bonita, sim.
- Sempre elogiou o Benfica, mesmo em Itália. Ou seja, nunca o disse apenas para parecer bem na Imprensa portuguesa. Sempre foi uma relação genuína...
- Sim, eu não preciso de dizer coisas para ser simpático para as pessoas. Não sei se está recordado, quando houve o Juventus-Benfica na meia-final da Liga Europa, eu estava em Itália e disse que ia torcer pelo Benfica. Não tenho problemas com isso. Quando falámos do meu carácter, a questão é mesmo esta. Eu sou italiano, estava a jogar em Itália e já tinha jogado na Juventus, portanto podia dizer que ia torcer pela equipa italiano, pela Juventus, para parecer bem às pessoas. Mas eu não sou assim, não preciso dessas coisas. Digo a verdade, digo aquilo que penso. Não preciso dessas coisas. Se digo que o Benfica foi a experiência mais bonita da minha vida, é porque é mesmo assim. Não preciso da Imprensa portuguesa para nada.
- Ter jogado no Benfica foi mais importante do que conquistar títulos?
- Quer dizer, vencer é sempre bom para todos, seja em que clube for. Por isso, claro, ainda mais bonito do que ter jogado no Benfica teria sido ganhar algum título pelo Benfica.
- Os adeptos do Benfica nunca o esqueceram de si. Como se explica uma relação assim tão forte, tendo em conta que não ficou muito tempo no clube?
- Não sei explicar. Se calhar eles viram em mim um jogador que sempre honrou a camisola, que sempre a vestiu com muito respeito, tal como o Benfica escreveu no site, quando abandonei. Fui sempre assim em toda a minha carreira, e se calhar é por isso que ainda hoje sou tão acarinhado.
- O golo contra o Liverpool foi o ponto alto com a camisola do Benfica?
- Esse é um golo histórico. E foi um jogo inesquecível. Vencer (2-1) nos oitavos de final da Liga dos Campeões, em Liverpool, contra aquela grande equipa que o nosso rival tinha na altura, foi sem dúvida um dos pontos mais altos da minha passagem pelo Benfica.
- Fernando Santos foi entrevistado pelo nosso jornal no início do ano e disse que você tinha um talento fora do normal, que foi dos melhores com quem trabalhou e que podia ter tido uma carreira fantástica mas que levava tudo na desportiva e gostava muito de comer...
- (Risos) Isso é verdade, sempre foi uma coisa que gostei... Em relação ao Fernando Santos, gosto muito dele também. Como treinador e, sobretudo, como pessoa. É adorável, excepcional. Recordo-o com muito carinho e lembro-me muitas vezes dele também. Espero, um dia, ir a Portugal e poder encontrar-me com ele, estarmos um pouco juntos, darmos um passeio. Tenho grande estima por ele, deu-me muito.
- Voltando ao garfo e faca, sempre teve essa fama de gostar de comer...
- Não! (risos)
- É um mito?
- (Risos) Havia espaço para tudo. As pessoas sabiam que eu era assim. É a verdade. Não é que comesse de manhã à noite, mas também nunca fui uma pessoa como o Cristiano Ronaldo, que controla tudo. Eu era assim, ou gostavas de mim assim ou não tinhas hipótese.
- Sendo adepto do Benfica, ainda vê os jogos?
- Sim, continuo a seguir sempre o Benfica.
- E o que tem achado? Alguém o impressiona em particular?
- É uma equipa muito compacta e com bons jogadores. O Jonas está muito bem, marca muitos golos, e o Mitroglou também está muito bem. O Benfica pode ter sucesso, vamos ver como será até ao fim do campeonato. Vai ser equilibrado entre Benfica, FC Porto e Sporting.
- O Bryan Cristante foi emprestado pelo seu Benfica ao seu Palermo.
- É um jogador que conhece bem o campeonato italiano, e espero que, por ele e pelo Palermo, possa ter sucesso.
- Quando pensa vir a Lisboa?
- Agora que parei de jogar, de certeza que irei em breve porque tenho mais tempo. E também tenho muita vontade de voltar a ver o Benfica. Ainda não sei quando vou, mas vou, isso é certo. Até porque tenho aí muitos amigos,como o Nuno Gomes e o Rui Costa. Quero muito voltar a vê-los.
- Ainda mantém contacto com os seus ex-colegas de equipa?
- Tenho falado só com o Nuno Gomes.
- Já entregou a Maradona o brinco que comprou para lhe devolver? (n.d.r. o artigo foi comprado por €25 mil euros num leilão público, depois de o fisco italiano o ter confiscado, devido a dividas fiscais de Maradona, o grande ídolo de infância de Miccoli)
- Ainda não lho dei, mas só porque ainda não tive hipóteses de o encontrar. Assim que isso acontecer, vou devolver-lhe. Para mim o Maradona é tudo e ele sabe.
- Quer comentar as acusações de ligações à mafia?
- Não, agora não. Falarei quando chegar o momento certo.
Fabrizio Miccoli
Data nascimento: 27/06/1979 (36 anos)
Naturalidade: Nardó (Itália)
Peso: 73 quilos
Altura: 1,68 metros
Posição: Avançado
Jogos por clubes: 589 (215 golos)
Internacionalizações: 10 (2 golos)
Percurso: AS San Sonato e Milan (camadas jovens); Casarano (1996-1998); Ternana (1998-2002); Perugia (2002/04); Fiorentina (2004/05, empréstimo da Juventus); Benfica (2005-2007, empréstimo da Juventus), Palermo (2007-2013); Lecce (2013-2015); Birkirkara (2015)
Títulos: Supertaça Itália (2003, Juventus)
Nuno Gomes
Miccoli era jogador fora de série
«O Miccoli era um fora de série tecnicamente e tinha pormenores só ao alcance de jogadores de grande nível. Entendia-me muito bem com ele dentro e fora do campo e continuamos a ser amigos hoje em dia. É daqueles jogadores que deixam saudades.»
Rui Costa
Miccoli podia ter sido dos melhores do Mundo
«O Miccoli foi dos jogadores mais geniais com quem joguei futebol e tenho o maior apreço por ele, pela relação que criámos. É um rapaz extraordinário, muito divertido, com uma alegria impressionante e contagiante que também levava para dentro do campo. Era importante para as equipas onde jogava e ao mesmo tempo divertia os adeptos. O futebol perdeu mais um génio. Foi pena alguns contratempos que teve, mas estou à vontade para dizer isto porque lhe disse várias vezes: o Miccoli podia ter sido dos melhores jogadores do Mundo, pela genialidade e talento que tinha. Recordo-me do primeiro jogo que fiz contra ele em Itália, um Perugia-Milan, em que marcou um golo fora do normal. Estava a começar a destacar-se e depois desse momento eu percebi, e toda a Itália percebeu, que estava ali um jogador espectacular. Mais tarde fomos colegas no Benfica e tive o prazer de o conhecer pessoalmente. Criámos uma óptima relação, é um óptimo amigo e uma pessoa fantástica. A grande pecha da carreira dele é, de facto, praticamente não ter ganho títulos, mas atenção que isso não diminui em nada o grande talento e qualidade que tinha, apenas acabou por não o valorizar como ele merecia. Acontece com alguns jogadores e aconteceu com Miccoli.»
Facebook Oficial do Benfica, 16 de Dezembro de 2016
«Adeus aos relvados aos 36 anos. Obrigado, Fabrízio Miccoli, pelos golos e pela dignidade com que representaste o Sport Lisboa e Benfica. Serás sempre um de nós!»
Quem jogou com Miccoli em 2005/06
Treinador: Ronald Koeman
Quim, Moreira, Moretto, Rui Nereu, Ricardo Rocha, Anderson, Alcides, Luisão, Dos Santos, Nélson, Léo, Beto, Petit, Manuel Fernandes, Karyaka, João Coimbra, Karagounis, Nuno Assis, Geovanni, Simão, Laurent Robert, João Pereira, Manduca, Marco Ferreira, Hélio Roque, Carlitos, Nuno Gomes, Marcel e Mantorras.
'Padrinho' Portugal
Estreou-se pela selecção frente a Portugal, 12 de Fevereiro de 2003, era Trapattoni o seleccionador, e nesse particular assistiu Corradi para o único golo. A 30 de Março de 2004, noutro particular com os lusos, marcou o primeiro golo pela squadra azzurra, um canto directo que deu a vitória (2-1).
Coleccionador
Miccoli gosta de tatuagens (a de Che Guevara é uma das que tem) e colecciona camisolas. Tem, entre muitas, as de Rui Costa e do ídolo italiano Roberto Baggio, mas as mais valiosas são de Romário (Fluminense) e Maradona (Nápoles). Já lhe ofereceram 10 mil euros pela do astro argentino.
Família é o pilar
Conheceu a mulher, Flaviana, quando ele tinha 14 anos e ela 17. Para meter conversa chutou a bola contra as pernas dela. Têm dois filhos, Swami (nascida em 2003 e cujo nome significa amor em indiano) e Diego (nascido em 2008 e baptizado assim em homenagem a Maradona).
O ídolo Maradona
Em miúdo chamavam-lhe Fabrízio Maradona, mas Fabri (como lhe chamam os amigos de infância), também chegou a ser apelidado de El Pibe de Nardó, Romário de Salento, ou novo Del Piero. Estreou-se nos seniores aos 16 anos, pelo Casarano."
Entrevista de Gonçalo Guimarães, a Fabrízio Miccoli, in A Bola