"E, ao décimo quarto dia, o Mundial começou.
É o tempo do “pátria o muerte” guevarista porque o futebol moderno, segundo um dos seus “inventores”, Bill Shankly, é muito mais importante do que uma questão de vida ou de morte.
Há quase 20 anos que proclamamos “mata-mata, como dizia o Scolari” para identificar a carga dramática das etapas decisivas dos campeonatos a que, antes do Euro-2004, chamávamos formal e desenxabidamente de “segunda fase” ou, num pico de emoção, de “fase a eliminar” como tradução do original inglês “knockout phase”, mais tarde “playoffs”. De eliminar para matar, é desta diferença semântica que se ergue a transcendência dos próximos jogos do Mundial.
Com fortes indícios de que este pode ser o “Mundial de Messi”, agora que o argentino entrou no segundo milénio de jogos com uma vitória e superando sem esgares nem ruído um “recorde” de Maradona, a perspectiva de um mata-mata entre ele e Cristiano Ronaldo na final, já faz salivar de ansiedade o mundo dos adeptos apaixonados e os escritórios dos donos do negócio.
A tradição de Portugal em mata-matas mundiais é pobre, com dois campeonatos positivos em 1966 e 2006, mas também duas eliminações à primeira, em 2010 e 2018. E Cristiano apresenta um défice de duas vitórias, uma delas nos penaltis, e três derrotas, enquanto Messi tem um saldo positivo de 5-4.
Para lá chegar, contudo, é preciso superar a Suíça, o país com maior esperança média de vida de todos os participantes no Catar, mas que nunca ganhou um jogo de “mata-mata” em Mundiais, somando 5 derrotas na primeira eliminatória dos “playoffs” como a de terça-feira em Lusail. E a Espanha. E a França. Ou a Inglaterra.
E, que o argentino elimine o Brasil, pátria do mata-mata e do seu guru, Luis Felipe Scolari, vencedor do Mundial de 2002, onde as pessoas, tradicionalmente, menosprezam a falta de emoção das competições de “pontos corridos”.
Quanto sofrimento nos espera!
O modelo de mata-mata, como o conhecemos hoje, só foi adoptado definitivamente no Mundial do México de 1986, depois de experiências falhadas com a segunda fase em “poule” nos campeonatos de Argentina-1978 e Espanha-1982. Uma espécie de ovo de Colombo desportivo e comercial que demorou décadas a pôr de pé pelos dirigentes da FIFA, tradicionalmente lerdos a tomar decisões óbvias.
Aos que consideram que o futebol de hoje é muito mais difícil do que o do século passado, dedico a memória que serve de ilustração a este artigo, sobre os quartos-de-final do Mundial de 1934, disputados em Florença, sob a pressão (e repressão) de Mussolini, entre a Itália e a Espanha. Depois de empatarem no dia 31 de Maio, apresentaram-se de novo a jogo de desempate a 1 de Junho, dois encontros em 24 horas, num tempo em que não havia substituições, a inspirar esse título de “Viva La Muerte”, sobre uma foto do histórico Giuseppe Meazza, desmaiado pelo esforço, que fui encontrar na reprodução do L’Auto, o jornal desportivo que deu origem ao grande L’Équipe após a Segunda Guerra Mundial.
É desta tradição agonística que descende o ADN desta competição.
Este modelo com jogos extra e prolongamentos de desempate até alguém cair para o lado era um pesadelo para as equipas e para os países organizadores, mas só foi abandonado em definitivo depois da invenção da decisão por penaltis, em 1976. O “mata-mata” impôs-se, então, como fórmula simples, mas certeira, que arruma o assunto com a mesma eficácia letal com que o “Chelus Fimbriata", o cágado de pescoço de cobra que os índios Kanamari baptizaram precisamente de “mata-mata”, devora de uma penada e sem mastigar as suas pequenas presas nas bacias lamacentas da Amazónia.
O significado deste nome é o “quem perde, paga”, sem remissão, da cultura dos velhos salões de bilhares das cidades portuguesas ou do jogo do “abafa” em que a bazuca conquista os berlindes pequenos pelo tiro certeiro. No Brasil original, foram estes jogos de “sinuca” e de “bolinha de gude”, também chamados de “mata-mata”, sem indulgência para os perdedores, à maneira do cágado da Amazónia, que inspiraram a sua adopção pelo léxico do futebol.
E, “lá está”, como diria o Marco Caneira, o mata-mata futebolístico mais importante das nossas vidas começou com a liquidação de duas pequenas presas fáceis, Estados Unidos e Austrália, abocanhados por dois predadores, a Holanda e a Argentina - grandes gladiadores dos Coliseus do mata-mata internacional, de onde só se sai aos ombros da glória ou na padiola dos derrotados."