Últimas indefectivações

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Clínica da Luz

"Artur, Siqueira, Sílvio, Fejsa, Matic, Salvio, Enzo Perez, Ruben Amorim, Sulejmani, Cardozo e Markovic. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de uma proposta de “onze” apontada aos próximos jogos. Trata-se, sim, da longa lista de ausências (a maioria por lesão, algumas também por castigo) que afligiram o Benfica nesta primeira fase de temporada. Para completar o inusitado cenário, resta acrescentar o próprio treinador Jorge Jesus - também ele ausente por castigo durante várias semanas.
Salvio, que havia estado em destaque na pré-temporada, lesionou-se à 3.ª ronda, para não mais voltar a jogar. Amorim, que se fixou como titular em Atenas, permitindo então a adopção de um novo sistema táctico, lesionou-se no jogo seguinte. Cardozo, que depois da novela de início de época recuperara a sua melhor forma, e mostrava pontaria mais afinada do que nunca, também ficou no estaleiro, onde se mantém. Siqueira, que aparentava ter condições para resolver o velho problema da ala esquerda da defesa, rapidamente se viu, também ele, impedido de jogar. Matic e Enzo foram castigados à vez, inviabilizando, durante duas jornadas, a construção do melhor meio-campo encarnado. Sílvio só em Outubro pôde discutir um lugar. Fejsa lesionou-se em Paris. Markovic em Lisboa. Sulejmani em Belgrado, e, por fim, Artur em Olhão.
Quando um destes dias ouvia um comentador televisivo culpar Jesus pela indefinição do onze-base do Benfica, quase tive vontade de rir. É verdade que nem sempre os jogadores têm demonstrado a fibra de campeões que se vira, por exemplo, ao longo da maior parte da temporada passada. É também verdade que alguns dos reforços demoraram tempo demasiado a adaptar-se ao grau de exigência do clube. Mas, caramba, com tantos contratempos, manter ainda assim o 1.º lugar da tabela (embora de forma partilhada), é algo que deveria conferir algum pudor à crítica.
Sejamos justos. O que seria dos nossos adversários directos caso padecessem de tão extenso rol de contrariedades? Estariam na luta?"

Luís Fialho, in O Benfica

Elogio de Sporting e FC Porto à Taça da Liga

"FC Porto e Sporting mostraram no último fim-de-semana de 2013 que a Taça da Liga está ao nível da Liga dos Campeões nos seus objectivos para esta época. Ambas as equipas apresentaram os seus melhores jogadores e com uma entrega digna de registo. Curiosamente o FC Porto conseguiu um empate (que não mereceu) graças ao único não titular que apresentou: o guarda-redes Fabiano Freitas foi o herói da equipa azul e branca.
Esta vontade de ganhar a competição só não é verbalizada com mais coragem, porque isso era dar valor a quem ganhou dois terços das vezes esta prova. E o que une Sporting e FC Porto é não conseguir dar valor a nada que o Benfica vença.
Eu elogio o Sporting e o FC Porto por quererem muito vencer a Taça da Liga, já ambos chegaram duas vezes à final desta competição e nunca conseguiram conquistá-la. É justo e prestigiante esta entrega à prova por parte dos nossos rivais.
Por exemplo, eu festejei o golo contra o Nacional da Madeira a passear na Madison Avenue. Durante o jogo com a equipa madeirense recebi 23 preciosos sms, que me mantiveram informado mesmo à distância de um continente.
Escrevo com o frio de Nova York a atingir os 15 graus negativos, mas com a convicção de que os sms de amanhã vão noticiar mais uma vitória contra o Gil Vicente, na Taça de Portugal.
Com o Central Park coberto de neve, um frio siberiano, e uma paisagem dos deuses, basta uma vitória contra o Gil Vicente para o ano de 2014 ter entrado de forma perfeita, até porque o cordeiro no Balthazar também estava perfeito.
Mesmo nas condições mais simpáticas da vida, a vitória do Benfica é fundamental."

Sílvio Cervan, in A Bola

O preço da desigualdade no futebol

"Joseph Stiglitz apresentou, neste ano de 2013, o livro O preço da desigualdade onde defende a ideia de que a troika mais ricos/mais políticos/mais influentes ganha com a desigualdade sócio-económica. Quem investiga o futebol, depressa observará também que a desigualdade entre Grandes e os outros (que acontece em todos os campeonatos profissionais europeus) tem alimentado a pretensa grandeza de uns e poderá, em breve, levar a uma implosão (no mínimo, a um retrocesso histórico) do desporto-rei no Velho Continente. Esta ameaça tem três dimensões: desregulação financeira, descapitalização e desigualdade. 

Desregulação financeira
Os actuais fundos de investimento mais não são que a modernização do patronato que nas décadas de 50 a 70, alguns mecenas realizavam sobre determinados clubes assegurando a fidelização dos craques. Neste momento, os empresários/investidores reúnem capital, criam um fundo (por vezes, sediado em offshores) e adquirem percentagens dos passes dos jogadores, beneficiando das mais-valias pelas sucessivas transferências. Em primeiro lugar, quem perde algum controlo é a figura do agente tradicional que recebia a figura da comissão. Em segundo lugar, devido à emergência da figura no panorama financeiro, creio que a mesma possibilita perdas de receitas fiscais para os Estados. Por último, complexifica as finanças do futebol – cada vez mais anónimas e cada vez mais longe dos estádios. O pedido da UEFA em 2012 (dirigido à FIFA, para proibir a actividade global destes fundos, agilizadores de transferências de jogadores de campeonatos emergentes) é um toque a rebate.

Descapitalização
No caso de um clube de futebol representado por uma SAD, os primeiros decisores deveriam ser os sócios detentores do capital da SAD. Desde o momento que o clube não está controlado pelos sócios locais e pelos adeptos, fica à mercê dos interesses dos verdadeiros donos da bola. Obviamente, esta ausência de controlo pode, numa escala maior, deteriorar os respectivos campeonatos e a indústria no global, se existir um ciclo de descapitalização das SAD devido a necessidades financeiras. Nessa altura, corremos o risco de deixar de ter clubes, mesmo num sentido estético. Para acautelar a realidade contra a eventualidade desse cenário, seria útil que as Ligas internas, mas também a UEFA/FIFA criassem um fundo de capitalização obrigatória por parte dos clubes SAD que funcionasse como um seguro de resposta imediata perante os cenários de descapitalização emergente (este fundo teria alguma semelhança com o Fundo de Resgate europeu sediado no BCE).
A transição para que os clubes voltem a deter, por inteiro, os passes dos jogadores é um processo complexo que ninguém quer discutir. Haverá possivelmente direitos compensatórios, haverá possivelmente jogadores a perder valor, e haverá muito possivelmente clubes sem capacidade de intervenção. 

Desigualdade
O financiamento por obrigações (que virou ‘moda’ no futebol português) é tão só o resultado das necessidades de reestruturar o passivo dos clubes, levando a que a dívida aos fornecedores de capital de curto prazo seja atirada para os passivos de médio e longo prazo, dando alguma margem de liquidez para os clubes. No entanto, quando estes empréstimos vencerem, gera-se a necessidade de recorrer novamente ao processo de pagar as dívidas em vencimento com dívidas em contracção. No entanto, este processo não é garantido para sempre; chega um ponto em que os financiadores duvidam da capacidade dos clubes solverem as dívidas, quer pelo crescendo das taxas de juro, quer pelo peso dos seus passivos. Nesse momento, não bastarão garantias reais – a liquidez só será garantida com a alienação de curto prazo dos activos. Neste momento, as fontes de financiamento mais adequadas passam pela capitalização dos direitos dos activos intangíveis: marcas, publicidade/merchandising, e direitos televisivos. Obviamente o aproveitamento dos direitos de formação, se bem gerido, pode ser uma almofada nestes tempos para clubes de menor dimensão.
A crise agrava o fosso entre clubes ricos, com mais craques e com mais pontos, e os clubes menos ricos, com menos craques, com menos pontos. A crise nunca diminui esse fosso. Olhem-se os resultados dos clubes portugueses por exemplo e a exposição conseguida com a representação nas provas europeias. Observe-se ainda uma representação histórica.
Muitos dirão que a desigualdade é aceite tacitamente. Todos, no caso português, têm uma preferência de 1.ª ou 2.ª escolha por um dos 3 grandes. E depois há o nosso hedonismo intrínseco – todos gostamos de apostar no cavalo que ganha, de sofrer durante e ganhar no fim, de saborear mais golos que o vizinho. Daí, tendermos a ser simpatizantes, adeptos e sócios dos Grandes que concentram maiores probabilidades de vitória e de sucesso. Afinal, a desigualdade começa em nós."

Doping: a questão filosófica

"Nos últimos tempos têm sido recorrentes as notícias relativas aos casos de doping no mundo do desporto. Do ciclismo ao atletismo, passando pelo futebol (e até no wrestling turco ou nos pombos de corrida…), são cada vez mais os competidores apanhados com substâncias proibidas.
Os casos do ciclismo têm merecido especial destaque, uma vez que surgiram confissões de ciclistas vencedores que conseguiram escapar à detecção nos controlos anti-doping (o que põe em causa a sua eficácia). Isso corrobora a ideia de que a “ciência” do doping está sempre à frente da “ciência” da detecção e de que a implantação do doping é, provavelmente, muito mais generalizada do que os números da detecção permitem supor. Tendo esta realidade como pano de fundo, duas questões levantam-se: o que deve ser considerado doping? Deve o doping ser proibido?
Uma tentativa de resposta pronta a estas questões parece simples: o doping é o conjunto daquelas substâncias externas que produzem um aumento artificial do desempenho atlético; e devem ser proibidas porque desvirtuam a competição, o mérito e podem causar danos a médio e longo prazo na saúde dos atletas. Porém, uma análise mais cuidada às perguntas não nos permite ser tão lineares. Na realidade, as respostas não são fáceis e exigem uma análise filosófica.
Primeiro, a classificação de algo como doping está longe de ser inequívoca (não é por acaso que a lista das substâncias proibidas está em constante mutação, com entradas e saídas de novos e velhos produtos). Depois, na definição de doping entram as ideias de “aumento de rendimento”, “artificial” e “prejudicial para a saúde”. Porém, nenhum desses atributos é exclusivo do doping. O plano alimentar de um atleta está desenhado de forma a maximizar a sua performance e nesse plano alimentar são incluídas substâncias manipuladas artificialmente, como suplementos proteicos ou complexos multivitamínicos. A metodologia do treino é também uma forma artificial de melhorar a performance do atleta e mesmo os equipamentos (ex. sapatilhas, fatos de banho ou raquetes) também condicionam o desempenho. Se pensarmos nos efeitos secundários, também teremos dificuldades. O desporto profissional, é sabido, faz mal à saúde e origina problemas, a médio e longo prazo, devido ao excesso de esforço a que os competidores submetem a sua “máquina” – ou seja, a classificação de algo como doping é complexa e subjectiva.
A segunda questão também não é fácil, porque não só o doping desvirtua o mérito. Na realidade, o mérito nas competições desportivas está muito mal compreendido. Em bom rigor, o mérito só devia ser medido em função do esforço relativo que cada atleta fez (e do seu progresso), não em função de quem ganha a competição. Senão, vejamos: que mérito tem um nadador que já nasceu com mãos e pés de tamanho desproporcionado, e com todas as características aquadinâmicas, face a um outro, de um metro e sessenta, mãos e pés pequenos, mas que se dedica e esforça muito mais? Que mérito tem um competidor de um país desenvolvido que tem ao seu dispor toda uma infra-estrutura física e humana potenciadora das suas capacidades, face a um de um país miserável? Na realidade, as competições desportivas servem muito mais para assinalar dons genéticos e condições de contexto (que tornam certos seres humanos especialmente dotados para a actividade em questão) do que para destacar o mérito. Não é por acaso que, numa mesma modalidade, os campeões são, fisicamente, muito parecidos. Não foi o treino que os moldou assim, foi a genética que lhes permitiu ficarem assim e a competição que os foi seleccionando. Não haja dúvida: um campeão tem que treinar muito para o ser. Mas o que o torna campeão não é o treinar mais que os outros senão o ser mais dotado. O doping entra nesta equação como uma tentativa de tudo superar: o atleta em desvantagem, ou mais ambicioso, usa o doping para ganhar. Depois, por pressão competitiva, os outros também têm que o usar para poderem continuar a lutar…
Enfim, a grande questão é saber o que queremos do desporto profissional. Se o objectivo for apenas produzir campeões e gerar receitas televisivas, então, poderemos vir a ter competições futurísticas entre mutantes especificamente desenhados para as provas, com a nanotecnologia e engenharia genética a terem o papel principal. Se quisermos enaltecer o mérito e a natureza humana, então, teremos que redesenhar, filosoficamente, todo o desporto profissional."

Morte errada

"Estou longe de ser um fã de Fórmula 1. E estou muitíssimo longe de ser um fã de Michael Schumacher. Ao desporto, considero-o repetitivo e pobre de alma nas paixões que desperta. Do piloto, acho praticamente o mesmo. Seja como for, é um dos melhores pilotos de todos os tempos e não é fácil encontrar semelhante currículo de vitórias noutra qualquer modalidade. Será essa a razão que leva um tamanho interesse global no seu estado de saúde? Ao ponto dum jornalista idiota se ter mascarado de padre para tentar entrar no seu quarto para supostamente nos informar sobre o seu estado de saúde? Talvez. Mas outra razão contribuiu para o interesse geral, o que me inclui a mim, que não ligo grande coisa à Fórmula 1. Há qualquer coisa de inusitado no acidente que ia tirando a vida a Schumacher.
Se Schumacher estivesse em risco de vida por uma doença crónica qualquer, seria banal. Se estivesse na cama do hospital por um acidente ligado à condução, seria expectável. Mas estar às portas da morte por ter ido contra uma rocha quando esquiava relativamente devagar, depois de anos a arriscar a vida a pilotar máquinas a velocidades pouco recomendáveis, é contranatura. É como ver um veterano de guerra morrer por um crime passional. É como se a morte tivesse de fazer justiça à vida. Não por ter de ser grandiosa ou banal, mas por dever ser adequada no seu contexto à história pública de quem se fina.
Conhecemos as figuras públicas pelas actividades que as fizeram públicas. E esperamos que essas pessoas morram de morte comum – a que é genericamente adequada a todas as vidas - ou de morte compatível - o cantor de rock morre de overdose, o escritor de cirrose, o ator suicida-se de forma dramática, o político é assassinado ou morre de “doença prolongada”, o desportista morre de mazelas antigas ou de velhice. O piloto de Fórmula 1 não morre a esquiar fora de uma pista. Não lhe fica bem. Por isso, Schumacher não está destinado a esta morte. É aquilo a que costumamos chamar de “morte estúpida”. O que, bem vistas as coisas, é a mais estúpida das afirmações. Como se não fossem todas as mortes inevitavelmente estúpidas. Ou apenas lamentavelmente necessárias."