"- Nasceu em Oliveira de Bairro e é filho de professores, certo?
- Sim, os meus pais eram ambos professores, já estão reformados. A minha mãe do ensino primário, e o meu pai de educação física no ensino secundário.
- Tem irmãos?
- Tenho um irmão e uma irmã, ambos mais novos do que eu.
- Na família tinha alguém ligado ao futebol?
- O meu pai foi jogador toda a vida, mas só jogou no Oliveira do Bairro por decisão dele, porque naquela altura deu preferência aos estudos e à carreira do ensino.
- Na sua infância era um miúdo calmo ou nem por isso?
- Acho que era um miúdo como os outros, gostava de andar a brincar na rua e fazia o necessário para passar de ano.
- Não gostava da escola?
- Sempre gostei da escola e sempre acabei; e fiz o que tinha que fazer. Eu chego primeiro ao ensino superior do que ao futebol profissional.
- Como é que começa o futebol?
- O futebol começa desde que comecei a andar. Pelo menos é o que me contam. Oficialmente, começou aos 10 anos, no Oliveira do Bairro, porque antigamente não havia escalões de formação inferiores aos infantis. O Oliveira do Bairro foi o único clube que representei nas camadas jovens.
- Foi para o clube porque pediu ao seu pai ou foi ele que o levou por sua iniciativa?
- Não faço ideia, sei que fui lá treinar e, no primeiro treino, fugi.
- Fugiu porquê?
- Por vergonha, por medo, não sei.
- Mas não chegou a fazer o treino?
- Não. O meu pai deixou-me lá e foi fazer não sei o quê e eu assim que percebi que ele não estava lá, fugi para debaixo da bancada e estive o treino todo escondido (risos).
- E depois?
- No final do treino, o meu pai foi perguntar ao treinador que era colega dele de Educação Física como é que tinha corrido e ele disse-lhe que eu não tinha treinado. Ainda apanhei umas lambadas bem valentes. Depois foi pacífico, foi só o primeiro treino, depois foi normal.
- Faz a formação toda no Oliveira do Bairro mas dispensam-no quando chega a sénior.
- Sim, eu mais uns cinco colegas juniores. Fomos todos para um clube da distrital de Aveiro. O Arbiscal foi quem nos recebeu.
- Quando foi dispensado deve ter apanhado um “balde de água fria”. Como é que reagiu?
- Seguramente deve ter sido, mas depois esqueci-me rapidamente porque a paixão de jogar era tanta, que onde tivesse que ser, seria.
- Começou logo como avançado ou noutras funções?
- Fiz a minha formação toda a jogar no meio campo, o meu primeiro ano de sénior também foi no meio campo, embora sempre fosse um jogador que tinha muita apetência pelo golo. No primeiro ano de sénior, mesmo numa equipa muita fraquinha, fiz 12 golos. No ano seguinte fui contratado por uma equipa melhor, chamada Águas Boas, para jogar a médio também.
- Tinha quantos anos quando se estreou como sénior?
- 18 para 19, quando joguei no Arbiscal, e 19 para os 20 no Águas Boas.
- É no Águas Boas que se torna avançado?
- Sim, fiz um terço da época no meio campo, ou se calhar nem isso, e, curiosamente, no dia em que ia ser suplente houve um central que teve uma indisposição, não pôde jogar, o meu colega do meio foi para central e eu entrei para o meio e marquei quatro golos. No final o treinador disse-me: “Desculpa João mas nunca mais vais jogar no meio, vais começar a jogar à frente”.
- Disse há pouco que prosseguiu sempre com os estudos...
- Sim, embora tivesse chumbado no 8º ano. Estava numa turma muito má, com más influências e depois como eu era um ano mais novo do que eles, também me deixava levar pelas brincadeiras mais idiotas.
- Os seus pais como é que reagiram?
- Muito mal e o castigo era não jogar futebol. Estive dois ou três períodos enquanto atleta de formação, sem jogar. O meu pai proibia-me de jogar até eu subir as notas.
- Só chumbou no 8º ano?
- E no primeiro ano da faculdade, não entrei logo directo.
- Para que curso que queria ir?
- Para Educação Física. Só que entretanto na altura não tinha a cadeira de Biologia do 12º ano feita e acabei por não poder concorrer na primeira fase. Não me candidatei à 2ª e fiquei um ano para subir notas e fazer Biologia. Daí só ter entrado com 21 anos.
- Entra em que faculdade?
- Na Escola Superior de Educação de Castelo Branco. Não era a minha primeira opção. A primeira era Coimbra.
- Mas nessa altura ainda não jogava na Académica pois não?
- Não. Entrei na faculdade, ainda fui para o Anadia e só fui para a Académica depois.
- Vai para o Anadia em que época?
- 1995-96.
- Como é que surge a Académica? Na altura já tinha empresário?
- Não, antes não havia nada disso. Vou para a Académica porque quando estive no Anadia, fizemos uma grande época, disputámos os lugares de cima quase todo o ano, fiz uma dupla muito bonita com um colega do Anadia, o Frasco. Ele fez, salvo erro, 19 ou 20 golos, eu fiz 14. Ele era mais velho do que eu uns cinco, seis anos. E no final da época fui fazer testes à Académica.
- Quando era pequeno torcia porque clube?
- Pelo Sporting.
- O seu pai também torcia pelo Sporting?
- É tudo benfiquista (risos). Os meus dois avôs eram portistas e tinha um tio meu que era sportinguista. Foi o único que me deu uma bandeira, e pronto escolhi o Sporting. Era sportinguista mas nunca fui muito sofredor.
- Quando é que faz o primeiro contrato profissional?
- Em 1996-97, quando vou para a Académica.
- Só aí é que começa a ganhar dinheiro?
- Sim, ganhava para comer.
- Mas foi o seu primeiro ordenado?
- Não, o Anadia já pagava e os outros clubes já pagavam, mas o pagamento da Arbiscal era uma nota. Era uma nota mas para mim já era muito.
- Era uma nota de que valor?
- Uma nota das verdes, antigas, cinco mil escudos.
- Lembra-se do que fez com o primeiro dinheiro que ganhou?
- Não tenho a certeza, mas com o segundo salário comprei um casaco de penas. Há 25 anos ter um casaco de penas era um luxo que não estava ao alcance de todos. Custou-me 16 contos.
- Quando vai para a Académica já tem carro?
- Já tinha um carrito, um Renault 5. Custou-me 30 contos.
- Que idade tinha?
- Uns 20 talvez. Sim, quando fui para o Anadia já o tinha.
- Quando vai para a Académica é a primeira grande mudança na sua vida. Deixa a casa dos pais...
- Sim. Quando vou para a Académica é o primeiro sonho concretizado. Não só por ir representar o clube que é, mas também por concretizar o sonho de ser profissional.
- Nessa altura não lhe passava pela cabeça jogar no Benfica.
- Não, longe disso.
- E o curso?
- Quando vou para Coimbra peço a transferência que foi autorizada e passei a ter aulas em Coimbra.
- Esteve em Coimbra três épocas e meia. Quando se lembra desse tempo, qual é a melhor recordação lhe vem logo à cabeça?
- O ano da subida, logo na minha primeira época, 1996/97. Embora tenha sido um ano de aprendizagem, um ano difícil para mim, joguei pouco, mas o que joguei foi importante para mim e em determinados momentos importantes para a Académica.
- Ficou a viver sozinho em Coimbra?
- Fui viver para Coimbra mas não me adaptei. Fiquei lá um ano sozinho, não tinha nada para fazer à noite, e no segundo ano decidi regressar a casa dos meus pais. Fazia 60, 70 quilómetros todos os dias.
- Nessa altura já tinha namorada?
- Sim, já tinha namorada e estar em Coimbra sozinho... Nunca fui um homem solitário.
- É com essa namorada que casa?
- Sim, a minha mulher actual e única.
- Já estão juntos há muito tempo.
- Já levamos mais tempo juntos que separados. São 22 anos de união.
- Ela trabalha?
- Não.
- Na Académica que treinadores é que apanhou?
- Vítor Oliveira, foi o primeiro, Henrique Calisto, José Romão, e o outro que agora não me lembro do nome que faz comentários para a Bola TV, e é pai do adjunto do Sérgio Conceição.
- E dessas três épocas e meia na Académica que outros jogadores apanhou que tenham tido sucesso?
- O Mickey, o Rocha, o Pedro Roma, os primos Campos, Miguel Bruno, o Vidigal que ainda hoje lá está, uma série deles.
- Deixa de estudar quando vai para o Benfica. Porquê?
- Há determinadas variáveis que influenciam o facto de deixarmos de ir às aulas, como por exemplo, descansar. Mas acho de uma relevância extrema aqueles que treinam e continuam a estudar.
- Também estão na flor da idade, começam a ganhar mais dinheiro, é natural que queiram viver a vida de outra forma e que se deslumbrem um bocadinho…
- Também pode influenciar, mas depois é o meio em que nós estamos inseridos que é um bocado estranho. As pessoas ficam mais reservadas, muitas vezes não gostam de aparecer.
- Como é que surge o Benfica? Quem é que o convida?
- Através do meu empresário, o José Veiga.
- Além do Benfica, teve outras propostas?
- Do meu conhecimento, não.
- Quando lhe falaram do Benfica como é que reagiu? Como é que é ser convidado por um grande?
- É uma situação que muitas pessoas até hoje não compreendem.
- Não compreendem o quê?
- O facto de eu ter saído da Académica para ir representar o Benfica. Ainda hoje sofro na pele isso. Foi muito mal aceite pelas pessoas de Coimbra.
- Porquê?
- Não queriam que eu saísse.
- Nunca o perdoaram?
- Não, não me perdoaram até hoje. Não sabe o que é que aconteceu em Coimbra quando o Famalicão lá foi jogar? [Houve invasão de campo de adeptos das duas equipas e João Tomás director desportivo do Famalicão, foi o principal alvo da fúria dos adeptos da Académica]. Mas não vale a pena entrar por ai. Tenho muita pena que isto seja assim, mas infelizmente é o que acontece. Não gosto de falar sobre isso.
- Quando vai para Lisboa, para o Benfica, vai sozinho?
- Sim, fui viver para um apartamento ao pé do estádio de Alvalade.
- Custou-lhe a adaptação à capital?
- Não custou muito porque todas as semanas acabava o jogo e vinha para cima, ia para Oliveira do Bairro. Mas o tempo que passava sozinho custava.
- Não houve ninguém no clube que o ajudasse a adaptar-se a Lisboa?
- No primeiro ano apanhei João Vieira Pinto, Nuno Gomes, Bossio, Paulo Madeira e esses mais velhos que são exemplos que mantive ao longo da minha carreira. Também cheguei a ser dos mais velhos em várias equipas por onde passei e gostava de colocar os mais novos à vontade.
- Dessa época e meia no Benfica quais foram os momentos mais marcantes para si?
- O célebre Benfica-Sporting, em que marquei dois golos, entre outros. Acho que quando chegamos a um desafio tão grande como esse, e no meu caso, embora não tenha certeza do que vou dizer, mas não são muitos os casos de jogadores que jogam na II Liga e chegam a uma equipa grande, jogam e são vendidos passado um ano e meio, ok? Orgulho-me disso, porque cheguei da Académica, mas da Académica da II Liga, não era a da I. Isso tem peso. Há pessoas que conseguem lidar com isso e outras que não. Felizmente, eu consegui. Em determinados momentos foi difícil? Foi claro.
- Porque é que diz que foi difícil?
- Claro que é difícil. Jogar num clube da dimensão do Benfica é difícil. A exigência é muito grande, temos de estar sempre no nosso melhor. E isso nem sempre é possível e umas vezes as pessoas compreendem, outras não.
- Foi um choque muito grande a passagem de Coimbra para o Benfica?
- Desportivamente foi, embora me relacionasse com a minha profissão exactamente da mesma maneira como me relacionava em Coimbra. Agora, claro que sabia que a exigência era outra porque aquilo que fazíamos muitas vezes não era suficiente, tínhamos que fazer mais e melhor. E se isso pode ser um factor motivacional muito grande, mas também pode ser um factor inibidor em determinadas circunstâncias.
- Sentia que tinha algo mais a provar do que os outros jogadores por ir vir da II divisão?
- (pausa) Nunca pensei isso. Possivelmente, posso em determinados momentos ter pensado que não estaria preparado para aquele desafio, mas depois esqueci-me rapidamente disso e tinha que agarrar todas as oportunidades com unhas e dentes.
- Esses momentos em que chegou a ter dúvidas de si, lembra-se de quais foram em concreto?
- (pausa) Em determinados momentos. Principalmente na segunda época. Já lá tinha estado uma época completa, primeiro com o Heynckes em que as correram correram muito bem, depois com o Mourinho, também muito bem. Depois com o Toni as coisas para o fim já não foram muito positivas. Nesse período de tempo houve momentos em que pensamos que as coisas não estavam bem para mim e não estavam bem para a equipa. Não é por nada que fizemos a pior classificação da história do clube nesse ano.
- Sim, um 6º lugar.
- E isso faz criar dúvidas. Todo o desporto de elite exige muito dos atletas e não é só em termos físicos, claramente. Não é por acaso que qualquer atleta que visita um médico a primeira coisa que este lhe diz é que o desporto de alta competição não dá saúde a ninguém.
- Como é que foi ter o Mourinho como treinador?
- Foi muito positivo. Guardo boas recordações dele, de vez em quando ainda falamos. Foi um período de tempo muito curto que coincidiu com a minha melhor fase no Benfica e isso já diz muita coisa.
- Ele é realmente um treinador assim tão especial?
- Naquele tempo não sei se era especial, mas era diferente.
- Em que aspecto?
- Na forma de lidar, na forma de falar, a forma tão específica com que tratava das coisas; era tudo muito bem organizado. Isso agora é vulgar mas naquela altura não era.
- Já disse que veio sozinho para Lisboa...
- ...mas venho já com o casamento marcado e consegui concretizá-lo.
- Casou quanto tempo depois de ter chegado ao Benfica?
- Fui para o Benfica em Janeiro de 2000 e casei em Junho desse ano. A minha mulher ficou comigo em Lisboa.
- Como surge o Bétis?
- Por convite.
- Hesitou?
- Obviamente que sim.
- Porquê?
- Porque a dimensão de uma coisa não é a dimensão da outra. Mas tínhamos de tomar decisões e as condições financeiras nessa altura pesaram.
- Na altura como estava a situação com o Benfica?
- Tinha mais dois anos de contrato, ainda tentámos uma abordagem para chegarmos a um número que fosse ao encontro daquilo que estivesse próximo do que já havia em cima da mesa, mas não foi possível. E resolvi ir.
- Como foi a adaptação a Espanha e ao clube?
- Muito fácil, muito boa, tudo tranquilo, Sevilha é uma cidade maravilhosa. Conhecemos muitas pessoas, se não vou todos os anos a Sevilha, vou de dois em dois. E se não vou eu, vêm alguns amigos aqui. Tenho uma relação muito próxima com a cidade.
- Como correram as coisas no Bétis?
- O primeiro ano foi muito positivo. O segundo foi mau, também porque me lesionei e tive de ser operado duas vezes ao joelho esquerdo com problemas de ligamentos. A lesão é o nosso inimigo número um.
- Porque sai de Sevilha e vem para o V. Guimarães?
- Porque o treinador decidiu emprestar-me e entre ficar em Espanha na II Liga, que era a proposta que havia, e regressar a Portugal, preferi vir para Portugal. E fui para o Vitória.
- Emprestado?
- Sim.
- Correu bem essa época?
- Não, foi muito má.
- Porquê?
- Também foi má para o clube. Estivemos muito próximo de descer de divisão e por isso não foi fácil.
- Depois troca Guimarães pelo SC Braga.
- Sim, o professor Jesualdo Ferreira quis-me levar para Braga, fui a Espanha solicitar que me emprestassem mais uma vez e vim. No segundo ano já fiquei a pertencer ao SC Braga.
- Segue-se o Qatar. Foi pelo dinheiro?
- Obviamente que as condições financeiras eram melhores.
- A mulher e filhas também foram?
- Foram. Mas eu fui primeiro. Cheguei ao Qatar cheio de reservas, porque a primeira coisa que fazemos é ir pesquisar na net para saber o que vamos encontrar. Mas quando lá cheguei liguei à minha mulher e disse-lhe que aquilo era tal e qual o que pensávamos, não havia diferença nenhuma para o que víamos na net, só não era tão verde. Estive lá entre 15 dias a um mês sozinho e entretanto elas chegaram. A adaptação foi muito fácil, a minha filha mais velha foi para a escola inglesa. Fizemos a vida como se estivéssemos em Portugal.
- Havia outros portugueses lá?
- Curiosamente, fui encontrar lá um casal de portugueses de Oliveira do Bairro. Embora eles fossem mais velhos que eu, lembro-me bem deles. O mundo é realmente pequeno.
- Em termos desportivos foi encontrar uma realidade diferente, um futebol mais fraco...
- Acho que é injusto chamar-lhe isso mas... com outro nível competitivo sim.
- Porque esteve em dois clubes no Qatar?
- Porque naquela altura, desde que houvesse acordo, os clubes tinham possibilidade de trocar jogadores uns com os outros. O treinador de outra equipa quis-me muito, a minha equipa não se opôs e eu fui para o outro lado.
- Isso obrigou-o a mudar de cidade?
- Não. Não foi preciso mudar nada.
- Não tem nenhuma nenhuma história do Qatar que possa contar?
- História, história não, mas tenho um episódio curioso. Sou aficionado das motas, gosto de corridas de motas, gosto de andar de mota.
- Tem mota?
- Não, não tenho mas gosto de andar de mota. Durante a minha adolescência o meu meio de transporte era motorizada que a minha mãe tinha, que era uma acelera de 1975 ou 76. Só tive essa mota, que era da minha mãe. Mas sempre tive um prazer especial em ver motas. Já fiz inclusivamente test drives em circuitos. E estava eu no Qatar quando um primo meu com quem eu andava de mota na adolescência me diz que ia acontecer o Grande Prémio das Super Bikes, em Janeiro ou Fevereiro, lá no Qatar. Ele diz-me que vai la estar um português que ele conhecia e que ia falar com ele para ele se encontrar comigo no Qatar e eu poder ir ao paddock e ver a partida da pista, etc.
- Quem era o piloto?
- O Miguel Praia. E a verdade é que nos encontrámos e sem nos conhecermos de parte alguma tornámo-nos amigos, mas amigalhaço mesmo de ele dormir na minha casa e eu na dele. Ficou uma amizade para o resto da vida.
- Quando andava de mota nunca teve nenhum acidente, nunca caiu?
- Não. De motorizada caí uma vez ou duas. Mas nada de mais, quem cai a 30 a hora... aquilo só dava 40 (risos). Cai uma vez sozinho naquelas aventuras de adolescentes, um gajo pensa que pode curvar mais do que deve e tumba, lá fui. Estraguei as calças de ganga. Depois, caí outra vez num episódio que tive com o meu primo. Ele caiu à minha frente e eu não consegui travar e passei por cima da mota dele e caí também a seguir, mas não nos magoámos nem nada. Também iamos a 20 ou 30 à hora porque íamos numa estrada da terra a brincar.
- Os seus pais nunca o proibiram de andar na mota à conta disso?
- Não, não. Aquilo não era considerado uma mota. Aquilo era uma bicicleta com um motor mini (risos).
- Voltando ao futebol. Regressa ao SC Braga porquê?
- Porque tinha contrato, eu fui emprestado.
- Tem pena de não ter ficado mais tempo no Qatar?
- Eventualmente, sim. Podia ter ficado lá mais um ano ou dois. Mas também não vinha para o Rio Ave e a história já não se fazia da mesma maneira.
- Já lá vamos. Fica uma época em Braga.
- Sim, também correu muito mal. O SC Braga fez uma época muito má, teve três treinadores, no final do ano dispensaram os meus serviços e fui à minha vida.
- O José Veiga nessa altura ainda era seu empresário?
- Não, ele deixou de ser meu empresário quando fui para Espanha.
- Teve mais algum empresário?
- Tive, mas esse é um assunto do qual não gosto de falar, porque as coisas nem sempre correm bem.
- Vai para o Boavista.
- Vou para o Boavista na I Liga só que entretanto descemos na secretaria e faço a época na II.
- Sente que teve azar ao longo da carreira?
- (risos). Azar é demasiado pesado, mas alguma falta de sorte, sim (risos). Falta de sorte especialmente com as pessoas que nos acompanham, ou melhor, que nos envolvem, que estão no ambiente que rodeia esta vida.
- É um meio difícil o do futebol?
- É um meio onde tens de estar sempre no auge das tuas capacidades. Quando não estiveres, tudo é esquecido rapidamente.
- Sente que tem de estar sempre com um pé atrás?
- Deves estar sempre com um pé atrás. Não tens que estar sempre mas deves precaver-te. Mas não é exclusivo do futebol. É um meio como todos os outros, como é a sociedade em geral, onde há gente boa e gente má. Ponto.
- Depois do Boavista vai para o Rio Ave.
- O Rio Ave já me queria no mercado de inverno, entretanto não foi possível e no final da época fui. E ainda bem que fui.
- Porquê?
- Porque as pessoas demonstraram sempre grande interesse sem me conhecerem como pessoa e depois, passados três anos e meio, dou-me muito feliz por ter tomado essa decisão. Seguramente as pessoas de Vila do Conde dirão o mesmo porque até hoje mantemos uma relação muito bonita.
- Pelo meio foi emprestado.
- Fui. Eu estava a fazer uma época muito boa no primeiro ano e o mister Manuel Cajuda estava nos Emirados Árabes e veio buscar-me. Fiz cinco meses lá.
- Com ou sem família?
- Sem. Fui sozinho porque eram só cinco meses. Se por ventura tivesse permanecido mais tempo, aí sim a família ia ter comigo.
- Como foram esses cinco meses?
- Muito parecido ao Qatar. Sem problema. Fiquei num aparthotel. Tranquilo.
- Regressa ao Rio Ave e ainda fica lá duas épocas e meia. que melhores recordações tem dessas épocas?
- Muitas e muito boas. Fiz o golo 100 no Rio Ave, tornei-me no melhor marcador da história do clube na I Divisão, fiquei sempre muito bem classificado na tabela dos melhores marcadores a lutar com o Falcão, com o Hulk e com o Cardozo, e isso são motivos mais do que suficientes para me sentir realizado. Conheci colegas com os quais tenho uma amizade que vai permanecer para a vida.
- Pode dar exemplos?
- Tarantini.
- Nessa altura conseguiu provar que se calhar as coisas não tinham corrido tão bem não por culpa sua mas pelas circunstâncias?
- Não, em Braga já me tinha acontecido isso. Aliás, eu não tinha de provar nada a ninguém. Fiz muitos golos na Académica, fiz muitos golos no Benfica, fiz menos golos no segundo ano de Sevilha e em Guimarães, mas porque as coisas nem sempre correm bem. Mas depois, em Braga, foi muito positivo. Atenção que quando cheguei a Braga já tinha 29 anos, e em termos competitivos, foi muito positivo ter feito a época que fiz. Os 17 golos no Benfica, na I Liga, é um marco difícil de alcançar, mas, na competição pura e dura do que é estar ao mais alto nível, talvez tenha sido em Braga que tenha alcançado isso. Embora por diferentes motivos em Vila do Conde também foi...mas em Vila do Conde já era mais uma sensação de prazer, à medida que as coisas iam acontecendo. É bom relembrar que cheguei ao Rio Ave com 34 anos, ok? E fiz o que fiz dos 34 aos 37 anos.
- Mas ainda vai a Angola.
- Na altura foi uma decisão difícil de tomar porque eu tinha projectos semi planeados aqui.
- Que projectos?
- Deixar de jogar no Rio Ave, assumir uma posição natural...mas não foi possível e fui para Angola. O clube em causa mostrou muito interesse.
- Foi com a família?
- Não, elas ficaram em Portugal por questões de logística, da escola.
- Depois decide colocar um fim na carreira.
- Sim, depois regresso a Portugal em Março de 2014, ainda tentei fazer qualquer coisa no futebol, mas os convites que tive foram da II liga e decidi pôr um ponto final na minha carreira e voltar à escola.
- Já lá vamos à escola, antes quero saber como é que foi a sua experiência na selecção.
- A primeira chamada à selecção A foi quando estava no Benfica. Nunca tinha sido chamado. Antes da A ainda joguei duas vezes na B, que entretanto foi extinta.
- Quem é que o chama?
- O António Oliveira, em 2000.
- Estreia-se com Israel, não é?
- Sim, com Israel, aqui em Braga. Um jogo particular, acho eu.
- Volta a ser chamado?
- Depois, salvo erro, fui chamado mais seis vezes e joguei quatro.
- Chega a fazer o Mundial de 2002?
- Não, não fui convocado.
- Quando se estreou o que achou do ambiente da selecção? É um ambiente muito diferente?
- É o ponto alto da carreira.
- Foi sempre um sonho jogar pela selecção?
- Não, nunca sonhei isso. Isso não se sonha. Ou é ou não é. Se estivermos num grande nível nos clubes, existe essa possibilidade, mas não se sonha, isso é uma consequência do que fazemos.
- Mas estava à espera de que acontecesse naquela altura?
- Nós esperamos sempre.
- O ambiente de selecção, de acordo com o que imaginou?
- Sim. Grande categoria em termos futebolísticos, grande categoria dos colegas, um grande nível. Foi muito positivo e inesquecível.
- Depois do Oliveira só volta a ser chamado pelo Scolari?
- Sim.
- Muito diferentes?
- Reconhecidamente, sim.
- Quais as maiores diferenças?
- O Scolari era uma pessoa mais extrovertida, digamos assim, mas acho que isso não é relevante, até porque já não tenho bem na memória esses detalhes.
- Chegou a fazer algum Europeu ou Mundial?
- Não, a fase final não. Joguei para o apuramento do Mundial de 2002 e para 2006.
- Sente alguma frustração em relação à selecção?
- Não sinto frustração nenhuma, mas reconheço que poderia ter ido mais vezes, isso não tenho dúvida em assumi-lo.
- Acha que isso não aconteceu porquê? Porque havia outros jogadores em pé de igualdade consigo ou por outras razões?
- Não ponho outra razão que não seja a escolha.
- Quando estava em Coimbra chamavam-lhe o “Jardel de Coimbra”. Gostava ou nem por isso?
- Houve um período que tinha algum sentido, depois deixou de ter, porque eu não era o Jardel de Coimbra, era o João Tomás, ponto.
- Mas não se importava com a comparação?
- Não me importava, nem ninguém se importa de ser comparado a coisas boas, mas quando as coisas boas começam a transformar-se em coisas más, já não gostamos. E chega a um ponto em que já não faz sentido porque também já somos reconhecidos e não faz sentido ser chamado pelo nome de outro.
- Quando abandonou a carreira em 2014 foi difícil tomar a decisão de “arrumar as botas”?
- Não, foi assumidamente natural. Chega um ponto em que percebemos que não dá. Não vale a pena andar a inventar e a chorar pelos cantos.
- É nessa altura que resolve inscrever-se na faculdade outra vez?
- Sim, para o mesmo curso, embora em moldes diferentes.
- Terminou o curso?
- Sim, em maio passado e já estou a tirar o mestrado. O conhecimento é fundamental para estar na vida. A licenciatura já me deu uma base muito boa para o trabalho que eu tenho agora, embora reconheça que algumas áreas são mais de gestão pura e temos que recorrer às pessoas que trabalham connosco, mas sinto-me perfeitamente preparado para mostrar ainda mais conhecimento também nessas áreas. As pessoas associam muito o trabalho de director desportivo à questão financeira, à questão das contas e da gestão, ok também é, mas não é só.
- O mestrado que vai fazer é em que área?
- Em treino desportivo.
- Não faz parte das suas ambições ser treinador?
- Não, não.
- Vê se mais no papel que está a desempenhar como director desportivo?
- Sim.
- É esse o seu objectivo, ser director desportivo, ou ambiciona chegar à presidência de um clube?
- O meu objectivo é fazer bem aquilo a que nos propomos e eu tomei a decisão em Abril do ano passado, de ter saído da formação do Sporting de Braga para assumir este cargo. A minha ambição é desempenhar bem as funções que desempenho na actualidade.
- Como é que se tornou treinador dos avançados do SC Braga?
- Conheço as pessoas e apresentei um projecto de treino específico dos avançados. Gostaram muito da ideia e resolveram implementaram. Era um projecto de treino específico dos avançados.
- De onde veio essa ideia?
- Da minha cabeça (risos).
- Não se inspirou em lado nenhum?
- Não, sempre falei nisso ao longo da minha carreira e tenho a certeza que continua a ser um projecto interessantíssimo para os clubes que tenham possibilidade de o fazer.
- Sabe se há outros clubes que o façam?
- Que eu tenha conhecimento, não.
- Em que é que consistia esse projecto? Em treinar especificamente o quê, posicionamento em campo, jogo aéreo?
- Tudo, tudo o que envolve o jogo.
- Esteve quanto tempo a fazer isso no Braga?
- Entrei em Setembro de 2015 e sai em Abril de 2017.
- Sai porque vai entretanto para o Famalicão.
- Sim.
- Sempre ambicionou ser director desportivo, é esse seu perfil?
- Enquadra-se naquilo que eu quero. Não tenho ambições de ser treinador, não creio que tenha perfil para isso. Também nunca tive perspectiva de desempenhar este cargo, embora já no tempo do Rio Ave se falasse de eventualmente eu poder encaixar-me nesse perfil de director desportivo quando acabasse a minha carreira.
- O dinheiro que foi juntando ao longo dos anos investiu em quê? No imobiliário, meteu-se em algum negócio?
- Não, não fiz grandes coisas ao nível dos investimentos.
- Sei que fez uma ligação Madrid-Lisboa em bicicleta. É verdade?
- Sim (risos). Em 2015
- Como é que surge?
- Fui convidado pela organização para fazer uma equipa que fizesse Madrid – Lisboa. Eu na altura não estava na formação do Braga quando aceitei esse desafio. Como deve calcular para fazer um desafio destes é preciso treinar muito, senão não fazemos nada, só vamos para lá sofrer e então foram algumas semanas boas, valentes a treinar para que fosse possível realizar isso. E lá fomos nós, foi uma brincadeira.
- Já conhecia o ciclista Rui Sousa?
- Já. Conheci-o através do Nelson e do Sérgio Rosado, os Anjos, de quem sou amigo.
- Conheceu-os onde e como?
- Há muitos anos, na apresentação de uns equipamentos do Benfica. Desde aí não perdemos o contacto.
- Foi muito dura essa ligação Madrid-Lisboa? O que é que custou mais?
- O que custou mais foi pedalar (risos). Tem que se estar medianamente preparado para fazer uma coisa dessas.
- Quando era jogador gostava de fazer noitadas de vez em quando?
- Odeio a noite até hoje. Não gosto nada. Claro que estaria a mentir se dissesse que nunca saí. Saí, obviamente, agora por norma, não. Não me identifico minimamente com a noite.
- Do que é que não gosta?
- Gosto de me levantar cedo e quem se levanta cedo, não se pode deitar tarde. Sempre gostei de dormir as minhas horas de sono, as tão famosas oito horinhas, por isso não há espaço para noitadas.
- E do Benfica, não tem nenhuma história para partilhar?
- Só tenho uma que já partilhei.
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- No Benfica, nos estágios eu ficava no quarto com o Bossio e havia uma pessoa que costumava ir aos quartos ver se estava tudo bem. E esse tipo tinha a mania de, ao sair do quarto, tirar o cartão que ligava as luzes, a televisão, tudo. Fazia sempre aquilo e eu dizia-lhe: “Uma dia fazemos-te uma a sério”. Ele ria-se, mas não parou. Um dia eu o Bossio esperamos que ele desse a volta a todos os quartos e chamámo-lo. O Bossio que era grande, escondeu-se atrás da porta e quando ele entrou atirámo-lo ao chão prendemos-lhe os pés com fita-cola, as mãos e tapamos-lhe a boca. Metemo-lo no corredor do hotel, um hotel de topo em Lisboa, e deixámo-lo lá sem se mexer, todo preso de boca tapada (risos). Agora desenrasca-te. Passado um bocado ele começa a bater nas portas e os outros jogadores foram saindo dos quartos e desataram todos a rir. (risos).