"A série original da Amazon, que estreia esta sexta-feira, leva-nos por uma viagem ao planeta de Diego, desde o começo em campos de terra em Villa Fiorito até ao sofrimento com as drogas, passando pela glória desportiva. Um ano após a morte de Maradona, continua bem presente o legado de alguém que, mais do que uma estrela do futebol, é um ícone cultural.
“O tempo é diferente com ele. 40 anos dele são não sei quantas vidas de uma pessoa comum. Ah, as voltas que deu ao mundo o meu pibe. E as voltas que deu dentro da cabeça dele…”.
Sentado ao lado da cama onde o seu filho está em coma em Punta del Este, Uruguai, o pai de Diego Armando Maradona vai fazendo gestos com a mão em direção àquele homem de 40 anos, ali algures entre a vida e a morte. Uma enfermeira interroga-se quanto àqueles gestos. E o progenitor explica-lhe a razão: “Estou a atirar-lhe a bola. O meu miúdo jamais deixaria que ela passasse sem se atirar para a cabecear”.
Nestas duas falas do pai de Maradona encontram-se dois eixos centrais da vida do diez: a ideia de que uma vida de Diego são, na verdade, várias vidas, cheias de glória e inferno, profecias cumpridas e tragédias, fama e pecado, contradições de um trajeto feito a velocidade supersónica; e o amor inegociável pela bola, que “no se mancha”, “não se suja”, como disse Maradona no seu discurso de despedida como jogador de futebol.
A série “Maradona, sueño bendito” é um original da Amazon, com o argentino Alejandro Aimetta como realizador e responsável pelo guião, no qual se ficciona a vida de uma das personagens culturais mais marcantes do seu tempo. Com estreia marcada para a altura em que se cumpre um ano da morte de alguém que, desde muito novo, pareceu tornar-se imortal, o visionamento dos três primeiros episódios - chamados “Promessa”, “Ditado” e “Máquina”, mostra-nos uma narrativa que vai alternando entre a ascensão meteórica do jovem Diego, de “menino-génio” do Argentinos Juniors a estrela do Boca Juniors e da seleção argentina, e a decadência do Maradona pós-retirada do futebol, com o seu coma em Punta del Este a evidenciar uma vida de excessos e, até, na fronteira da legalidade.
A primeira cena da série - a qual, no total, exigiu cinco anos de produção - sugere logo que a narrativa andará entre retratos de um Diego decadente e sem rumo e outro, mais novo, a saborear as glórias que aquele talento descomunal lhe proporcionava. No Uruguai, vemos um Maradona de 40 anos a cambalear, sofrendo para se manter de pé e com um pó branco em torno das narinas (a “blanca mujer/ De misterioso sabor y prohibido placer” que se canta em “La Mano de Dios” de Rodrigo).
Quando, finalmente, aquele homem com olhar perdido cai ao chão, inanimado, passa-lhe pela tudo o que viveu pela cabeça: a estreia no Argentinos Juniors, ainda adolescente, a fama em Nápoles e o Mundial 1986, mas também as tentações com as drogas, a relação conturbada com as mulheres e o sofrimento das lesões. Pela cabeça daquela Maradona que perdia a consciência passa, justamente, o filme que a série se dispõe a contar.
O DESENHO DA PERSONALIDADE
Procurando mostrar a intimidade de Diego, e não se cingindo só ao mero relato de acontecimentos por demais conhecidos, as cenas dos três primeiros episódios alternam entre os acontecimentos de Punta del Este, durante o coma, e a cronologia da vida do protagonista, abarcando os seus primeiros 22 anos de vida. E tendo, claramente, a intenção de sugerir traços de personalidade que, mais tarde, se tornarão, mais ou menos, do conhecimento público.
Toda a vida do diez tem algo de muito profético, de “sonho de menino” que se cumpriu. Na sua primeira entrevista, um imberbe Maradona fala dos seus “dois sonhos”: “jogar no Mundial” e “ser campeão” da “octava”, o escalão no qual competia. Desde aquele momento, aquelas promessas de glória - os “sueños de barrilete", como titulou Horacio Pagani, um dos clássicos do jornalismo argentino, numa das primeiras reportagens com Maradona - foram-se cumprindo e dando forma a uma vida em que o mítico se confunde com o real.
Das cenas do pelusa criança, adolescente e jovem adulto notam-se, na referida tentativa de desenhar a personalidade, o enorme apego pelos pais, manifestado num amor platónico pela mãe (“se o pai não tivesse chegado antes, eu teria casado contigo” diz a Doña Tota) e por, no momento em que é excluído do Mundial 1978, chorar por “ter falhado para com o pai”; uma relação de algum conflito com a imprensa, cuja primeira manifestação é o incómodo quando uma revista, não sendo, sequer, Diego um adolescente, se engana no seu apelido, escrevendo “Caradona”; e pela tendência para ser um líder, um capitão, na tradição do “Caudilhismo” latino-americano, com uma atitude de “vou até à morte com os meus contra os outros” que fica visível, por exemplo, quando se opõe aos adeptos radicais que irrompem pelo estágio do Boca Juniors para ameaçar e tentar extorquir alguns dos seus companheiros de equipa.
E, claro, a série mostra-nos o talento genial, o menino que dava toques em peças de fruta, o pré-adolescente que encantava multidões com os cebollitas, o nome da sua equipa na formação, o adolescente que brilhava com a camisola do Argentinos Juniors.
Esse período inicial da carreira profissional de Diego, sobre o qual há poucos registos de vídeo, é normalmente descrito por aqueles que o viram como “o melhor momento” do diez. Segundo Hugo Gatti, mítico guarda-redes do Boca que, um dia, chamou a Maradona “gordito” - respondendo o jovem craque marcando-lhe quatro golos na partida seguinte -, o Diego versão Argentinos Juniors “corria no ar”. Meio mito, meio realidade, como tudo na vida do pelusa.
HERÓIS EM CONTEXTOS DE CARÊNCIA
Como canta Calamaro (e as muitas referências musicais deste texto mostram bem como a lenda de Diego penetrou na cultura popular), “Maradona não é uma pessoa qualquer”, é um “homem pegado a uma bola de coro” que tem “o dom celestial de tratar muito bem o esférico. E, nessas danças de “amor que tinham como orgasmo um golaço” (letra de “Qué es Dios”), Maradona foi, sempre, uma espécie de salvador divino ao resgate de um grupo necessitado. Como que um desejado, um enviado para resolver os problemas terrenos.
Esta figura de herói na necessidade é, também, ilustrada na série, nas suas diferentes dimensões. Diego nasceu em Villa Fiorito em 1960, um bairro onde, como se vê no começo da narrativa, reina a miséria, não havendo água canalizada nem esgotos, com casas altamente precárias. E, graças ao seu talento, Maradona começa por tornar-se herói daqueles que mais amava: a sua família.
Cumpre a promessa de conseguir que o seu pai “nunca mais trabalhe” e, quando negoceia o seu primeiro contrato profissional com o Argentinos Juniors, o clube compra-lhe uma casa com espaço para toda a família num bairro melhor. Quando o seu pai se apercebe que a casa tem água canalizada, as lágrimas que lhe escorrem da cara têm o sabor da felicidade que a toda a família é proporcionada por aquele adolescente de cabelo rebelde. Maradona deu uma vida impensável a todos os que o rodeavam.
Mas a ideia do Diego que vem em resgate dos necessitados alarga-se muito além da sua família. Aplica-se ao Argentinos Juniors, clube de bairro descrito na série como estando “falido” e que se podia orgulhar de ter o “melhor jogador do país”, à Argentina, que se alimentou da genialidade de Maradona em 1986 para tentar curar as feridas das mortes das Malvinas ou as misérias do país, e, claro, ao Nápoles, o emblema do humilhado e pobre Sul de Itália que, pelos pés daquele general vindo não se sabe bem de onde, recuperou o orgulho e ganhou ao Norte, sendo melhor que Turim ou Milão.
VIVER COM O PESO DO MUNDO
Mas tanto abraço à sua genialidade levou, regularmente, ao sufoco. Em nenhum local como em Nápoles, que não aparece nestes três episódios iniciais, terá Maradona sentido esse abraço estrangulador, mas esse peso em cima dos ombros vai sendo, na série, retratado.
Desde muito novo Diego vai recebendo cartas com pedidos de pessoas, as quais lhe chegavam a suplicar por dinheiro para uma casa. Na sua conferência de imprensa de apresentação no Boca, perguntam a um Maradona de 20 anos como se sente ao assinar um contrato milionário quando o país está em crise. Na intimidade, o jovem clama ser “somente um jogador de futebol”.
Mas esse jogador foi percorrendo os corredores do poder, ainda que o poder não fosse do seu agrado. A sua família era "Peronista" e os seus pais choraram a morte de Perón em 1974, mas Maradona foi utilizado pelos militares da ditadura argentina para a sua propaganda, sendo recebido após liderar a seleção sub-20 ao triunfo no Mundial 1979 como um “símbolo da disciplina” enquanto as mães da Plaza de Mayo clamavam por saber onde estavam os seus filhos.
E foi-lhe pedido que, em 1982, no Mundial de Espanha, guiasse a seleção, que deveria “mostrar ao mundo que a Argentina é uma potência em tudo”, já que o país “estava a ganhar nas Malvinas e também tinha de ganhar noutro campo de batalha”. À chegada a Espanha, as perguntas dos jornalistas indiciavam que as coisas na guerra das Malvinas não estariam a correr exactamente como o poder militar na Argentina estava a propagandear. Em 1986, no encontro do "golo do século" e da “mão de deus”, Diego, o homem que tatuaria Che Guevara no braço e se tornaria íntimo de Fidel e Hugo Chavez, teria a sua pequena grande vingança.
À medida que a fama ia subindo, o pibe teve de saber lidar com o estrelato. Dizia Maradona que lhe “deram um pontapé no traseiro que o levou de Villa Fiorito para o topo da Torre Eiffel”, demonstrando como um menino de um bairro de lata estava, subitamente, nas bocas do mundo. E na série é ilustrado o mítico encontro com Pelé, que o avisa para as “más companhias”, ou as primeiras experiências sexuais com algumas artistas famosas da Argentina.
Pouco a pouco, este novo mundo de celebridades e noite foi aproximando o craque de certas tentações. E, como Maradona ainda em vida admitiu, a cocaína foi experimentada, pela primeira vez, em Barcelona, onde jogou entre 1982 e 1984. Como escreveu o mestre Eduardo Galeano, Maradona consumia “nas festas tristes, para esquecer ou ser esquecido, quando já estava encurralado pela glória e não podia viver sem a fama que não o deixava viver”. Ao longo da carreira de jogador, o consumo foi tendo picos, mas, após a retirada, houve várias crises, sendo uma das mais conhecidas, justamente, a retratada na série.
Pouco depois da passagem de ano de 1999 para 2000, Diego teve a já referida overdose, que o levou ao coma. Após um médico ser chamado à casa onde também estava Claudia, reconhecida por Diego como o “grande amor” da sua vida e mãe de Dalma e Giannina, mas de quem o diez já se encontrava separado, é evidente a preocupação de um dos homens que está com Maradona para que não vá àquele local uma ambulância nem demasiadas atenções sejam atraídas.
Trata-se de Guillermo Coppola, um conhecido empresário e bon vivant argentino que foi o mais célebre representante de Maradona, tendo-o acompanhado desde os anos dourados em Nápoles até a alguns dos pontos mais baixos da vida do jogador, como a reabilitação em Cuba. Coppola preocupa-se por passar à imprensa uma mensagem de normalidade, mas acaba detido pelas ligações pouco claras a uma pessoa que também estava na casa e era procurada pela justiça. Um retrato da confusão que foram muitos dos anos do Maradona pós-retirada.
Na Argentina, já se escreviam obituários, os quais teriam de ir sendo adiados durante mais duas décadas. Na casa de Punta del Este, uma das filhas de Maradona tentava saber, pela televisão, novidades sobre o seu pai entre todo aquele caos. Advertida por um médico sobre as consequências negativas de ver aquela especulação, a menina responde com um “claro que sei que eles exageram, sou a filha de Maradona”, como que dizendo estar vacinada para a confusão desde nascença.
A PERFEIÇÃO COM BOLA, A IMPERFEIÇÃO SEM ELA
“As pessoas têm de saber que Maradona não é uma máquina de dar felicidade”. A frase é dita na série por Diego ao seu pai, pouco antes de se juntar à seleção argentina - onde somos apresentados a um Menotti caracterizado com toques altamente paternais e protetores - para o Mundial 1982, e poderia ser encarada como um pedido para que não se esperasse o mundo daquele jovem, por muito que este fosse capaz de o dar.
A personalidade de general que liderava as tropas e a canhota que iluminava os campos levaram a uma devoção que se transformou num peso incomportável para alguém que até podia ser doutro planeta, mas vivia neste. Alguém que até podia desejar aquele nível de seguimento, mas não o conseguia suportar. E, a partir do momento em que a bola deixou de estar em jogo, tudo piorou.
Jorge Valdano, companheiro de Maradona nas glórias de 1986, costuma dizer que Diego só foi verdadeiramente feliz dentro de campo. Sem a bola, os fantasmas vinham ao de cima, como se viu após pendurar as botas. E, mesmo quando deixou de jogar, os períodos em que aqueles que melhor o conheciam o notavam mais em paz decorreram quando Maradona se encontrava a treinar uma qualquer equipa, sentindo o cheiro diário da relva. Sem esse aroma que o mantivesse ocupado, outros poderiam tornar-se tentadores.
Na série, ao ver Maradona em coma, Doña Tota, sua mãe, recorda quando o filho “era criança e feliz com a bola nos pés e os pés na lama”. O que, basicamente, são memórias de um diez sem o peso do mundo às costas. Fernando Signorini, mítico preparador físico do astro, costumava dizer que Maradona era a personagem que Diego tinha criado para conseguir lidar com a fama e a pressão. E garantia que “com Diego ia até ao fim do mundo, mas que com Maradona não daria nem um passo”.
A vida de Maradona tem tantas contradições como caños ("túneis") terá feito aquele pé esquerdo durante a vida. Tem mais ziguezagues dos que os que foram feitos para deixar os ingleses pelo caminho. Também por isso se gerou tamanha idolatria, tanta adoração, porque, como escreveu Galeano, ali estava “o mais humano dos deuses, um deus sujo, parecido connosco: fanfarrão, irresponsável, mulherengo, bêbado, mentiroso”.
Um ano depois da morte de Maradona e quase 61 anos volvidos do nascimento de Diego, pensar numa vida tão cheia ou rever vídeos das proezas dentro do campo levam-nos a imitar o que o primeiro treinador do pibe faz na série: pedir-lhe o documento de identificação. “Para verificar a idade dele?”, pergunta um. “Não, para comprovar que nasceu neste planeta”, responde o técnico."