"Um plano televisivo sem legendas mostrava-nos os presidentes do Braga, do Benfica e da Liga, firmes, hirtos e com caras de estarem sentados sobre uma almofada de punaises. No relvado, o espetáculo tinha parado por falta de corrente elétrica, enquanto nas bancadas da Pedreira energia era o que não faltava, fazendo ecoar por todo o país os sons da falta de civismo que grassa no reino.
Imaginar o que passava pelas mentes daqueles três Césares à varanda do Circus Maximus transporta-nos para o domínio do surreal, ao invés da premissa de dignificação de um espetáculo de qualidade, credibilidade e seriedade. O estádio de Souto Moura, oitava maravilha da arquitetura desportiva, entrava no anedotário das histórias mal contadas, por negligência do eletricista, com a sua caldeira topo de gama a oferecer aos visitantes o prazer de um duche frio em cima da banhada tática que lhes custara a liderança isolada do campeonato.
Os caprichos de um fusível ou de um termoacumulador não entravam no imaginário do “outro mundo” a que aludiu o guarda-redes Artur Moraes, sem menosprezar o seu conhecimento de causa, mas enfileiram agora na galeria das distrações a que um determinado sector recorre por sistema.
Porém, a falta de água quente que suscitou uma defesa da honra pela SAD minhota e um salomónico esclarecimento do chefe da Liga, testemunha da caldeira danificada, nada significa quando dois dos intervenientes no jogo acusam um adversário de insultos racistas. É uma situação extremamente grave que carece tomadas de posição firmes de cada um dos caudilhos da tribuna Axa, embora tenda a evoluir à revelia das instituições a caminho do poço sem fundo dos processos disciplinares hipócritas em que estes dirigentes normalmente expiam suas gafes e incongruências.
Liga e Federação vêm há anos encolhendo os ombros ao recrudescimento do fenómeno decorrente das manipulações em torno da famigerada Regionalização que foi colocando os genuínos em pé de guerra contra “mouros” e “espanhóis”, consoante as cores das camisolas. Os insultos contínuos, histriónicos e provocadores animaram a banda sonora daquele jogo até ao primeiro apagão, gritando seu ódio agudo para todo o país ouvir e se amedrontar.
Apesar da aposta declarada numa divisão dos portugueses em azuis e encarnados como forma de fortalecer as lideranças, ninguém, até ontem, associara tal antagonismo regionalista em sementes de racismo, perturbadores da sociedade. As hostes “organizadas” com o patrocínio dos clubes e SAD violam a lei antiviolência com assustadora frequência sem que, até hoje, esse mecanismo, dos mais avançados da Europa, tenha sido acionado por quem de direito, custando milhões ao erário público em operações de segurança pública.
Nenhum dos candidatos a presidente da Federação mostra preocupação com o perigo de explosão desta caldeira de intolerância que vem transformando as confortáveis bancadas das nossas pérolas de arquitetura desportiva em trincheiras para uma comandita alienada. A caldeirada que os desassossega é diferente, embora também vista de preto."