Últimas indefectivações
terça-feira, 14 de novembro de 2017
Saramago, o Benfica e a bola de cauchu
"A propósito de uma velha entrevista encontrada na gaveta, quando o Prémio Nobel da Literatura se dispôs a falar de futebol, dos seus gostos e das suas desilusões...
Recordo, hoje, José Saramago. Tinha acabado de ser Prémio Nobel da Literatura e fiz-lhe uma longa entrevista na qual faltava do Benfica.
Vou buscar essa conversa e tiro-lhe uns bocados para que a memória não prescreva.
Era Lisboa, um lugar da Baixa, Avenida da Liberdade.
Para lá da vidraça havia um céu claro, sem nuvens e sem pássaros. E uma cidade que fervilhava, uma quinzena de andares abaixo. 'Viajo devagar, o Tempo é este papel em que escrevo', dizia Saramago nas páginas do seu Manuel de Pintura e Caligrafia. Viajámos também devagar a todo o comprimento das entradas do diálogo.
Perguntai-lhe porque se afastara do futebol. Qual fora o motivo da sua desilusão. E ele: 'Não, não foi desilusão. Eu fui sócio do Benfica com os meus oito ou nove anos. Por influência do meu pai, claro está!, ele era um benfiquista ferrenho, do tempo do Estádio das Amoreiras, com aquelas bancadas e aquele peão de Terceiro Mundo. Mas depois as mudanças de vida levaram-me para outros caminhos. Não lhe apetecia estar a sair de casa para ver um jogo. Nunca fui suficientemente entusiasta para andar de bandeira e cachecol e toda essa parafernália que fez com que o espectáculo se tenha deslocado do campo para as bancadas. O que aliás está de acordo com os actuais costumes do mundo. Além do mais, desagradei-me...'
Um desagrado...
E, claro, era aí que eu queria chegar. Ao desagrado. Ao desagrado que ainda hoje é actual, mesmo tantos anos após a sua morte.
'Também não quero estar aqui com a conversa saudosista do antigamente é que era bom. Mas a verdade é que, nessa época, o jogador tinha o seu clube, e clube e jogador estavam pegados um ao outro. A camisola era uma coisa respeitável. Quase como uma outra bandeira. E o Benfica viveu o orgulho de só ter jogadores portugueses... E agora o que é que aconteceu? Caiu-se num exagero. Onde estão hoje o Benfica, o Sporting e o FC Porto? O futebol não passa de um negócio. Desapareceu uma certa solidariedade de grupo. Isso fez-me desinteressar pelo futebol, mas também é certo que nunca fui um grande aficionado'.
Pois sim, mas no preciso dia em que a Academia tornou público o seu nome como vencedor do Nobel, um dos seus amigos de infância quando lhe pediram para recordar alguma coisa de si, disse simplesmente: 'Foi o primeiro miúdo do nosso tempo na Azinhaga a ter uma bola de cauchu'...
E ele, desmentindo: 'Você sabe que a nosso memória é a coisa mais suspeita que se possa imaginar. Ela é capaz de inventar coisas que não existiram e passar a acreditar nelas. Até acontece que eu nunca tive uma bola de cauchu. Lembra-me bem de andar por lá a dar os meus pontapés, mas a bola não era minha'.
E concluía, sublinhando o seu gosto, tão próprio: 'Continuo a ter uma forte costela patriótica. Agora se não, por exemplo, espanhóis e defrontarem alemães, eu fico do lado dos espanhóis, naturalmente. O que também não significa muito, porque prefiro sempre aqueles que fazem o seu trabalho bem feito. E se uma boa equipa alemã jogo com uma boa equipa portuguesa, vejo por vezes a minha preferência cair para aquele que está a jogar melhor, independentemente do patriotismo. Com uma excepção, em todo o caso: quando um pequeno jogo com um muito grande, mesmo que jogue mal, estou a favor do pequeno'.
Recordo muitas coisas nestas páginas que aqui assino.
Também, desta vez, Saramago, benfiquista, Prémio Nobel.
E, uma visão de fora do campo, do lado das letras."
Afonso de Melo, in O Benfica
Todos os caminhos vão dar... a Sete Rios
"Milhares de pessoas marcaram presença na inauguração do Campo de Sete Rios, para assistirem a um dérbi emocionante.
O dia 12 de Outubro de 1913 'não podia ter amanhecido mais claro e convidativo. Céu limpo de nuvens, temperatura agradável, aragem fresca, sol brando, acariciador'. Era um dia perfeito para o 'início da temporada de «foot-ball»', com a disputa dos 'dois primeiros «matchs»' a contar para o Campeonato de Lisboa.
Os 'desafios mais importantes de Domingo estavam indicados para ser feitos no campo de Sete Rios, pertencente ao Sport Lisboa e Benfica, que, com esta série de jogos, inaugurou solenemente o recinto atlético que ultimamente adquiriu'. E o jogo que suscitava mais expectativa era o dérbi entre o Benfica e o Sporting. A equipa benfiquista não perdia um desafio oficial desde 1911 e o Clube encontrava-se a viver um período de crescimento extraordinário. A imprensa questionava-se: o 'Sport Lisboa e Benfica continuará a manter a supremacia?'.
Portanto, foi 'grande concorrência de espectadores' que se dirigiu ao Campo de Sete Rios, e todos 'os meios de transporte que o lisboeta dispõe para se fazer conduzir aos arredores foram utilizados com precipitação. Os carros, à cunha, punham pelas estradas do trajecto um aspecto entusiástico e alegre'. E assim, 'ante uma assistência numerossíma, que não será exagero computar em 5000 pessoas', o Benfica disputou o seu primeiro jogo no seu novo campo desportivo.
No momento em que os dois clubes rivais, capitaneados por Cosme Damião e Francisco Stromp, entraram em campo foram 'saudados com palmas pela assistência'. Se os minutos iniciais foram desinteressantes, a equipa benfiquista rapidamente ganhou supremacia e o jogo animou-se, com a assistência a dar a 'nota estridente e alegre dos seus incitamentos, por vezes exagerados e parciais'. Ainda no primeiro tempo, Cosme Damião passou a bola a Alberto Rio, que marcou o primeiro golo do desafio, e na 'segunda parte o Sport Lisboa e Benfica acentua a sua superioridade e marca três bolas sucessivas', fechando o marcador a quatro tentos sem resposta. Um início de época auspicioso, que culminaria com a conquista do Campeonato de Lisboa e que traria definitivamente para o Benfica o troféu correspondente a quatro épocas.
Pode ficar a saber mais sobre os campos desportivos do Benfica e os muitos momentos aí vividos na área 17 - Chão Sagrado no Museu Benfica - Cosme Damião."
Lídia Jorge, in O Benfica
Subscrever:
Mensagens (Atom)