"A propósito de uma velha entrevista encontrada na gaveta, quando o Prémio Nobel da Literatura se dispôs a falar de futebol, dos seus gostos e das suas desilusões...
Recordo, hoje, José Saramago. Tinha acabado de ser Prémio Nobel da Literatura e fiz-lhe uma longa entrevista na qual faltava do Benfica.
Vou buscar essa conversa e tiro-lhe uns bocados para que a memória não prescreva.
Era Lisboa, um lugar da Baixa, Avenida da Liberdade.
Para lá da vidraça havia um céu claro, sem nuvens e sem pássaros. E uma cidade que fervilhava, uma quinzena de andares abaixo. 'Viajo devagar, o Tempo é este papel em que escrevo', dizia Saramago nas páginas do seu Manuel de Pintura e Caligrafia. Viajámos também devagar a todo o comprimento das entradas do diálogo.
Perguntai-lhe porque se afastara do futebol. Qual fora o motivo da sua desilusão. E ele: 'Não, não foi desilusão. Eu fui sócio do Benfica com os meus oito ou nove anos. Por influência do meu pai, claro está!, ele era um benfiquista ferrenho, do tempo do Estádio das Amoreiras, com aquelas bancadas e aquele peão de Terceiro Mundo. Mas depois as mudanças de vida levaram-me para outros caminhos. Não lhe apetecia estar a sair de casa para ver um jogo. Nunca fui suficientemente entusiasta para andar de bandeira e cachecol e toda essa parafernália que fez com que o espectáculo se tenha deslocado do campo para as bancadas. O que aliás está de acordo com os actuais costumes do mundo. Além do mais, desagradei-me...'
Um desagrado...
E, claro, era aí que eu queria chegar. Ao desagrado. Ao desagrado que ainda hoje é actual, mesmo tantos anos após a sua morte.
'Também não quero estar aqui com a conversa saudosista do antigamente é que era bom. Mas a verdade é que, nessa época, o jogador tinha o seu clube, e clube e jogador estavam pegados um ao outro. A camisola era uma coisa respeitável. Quase como uma outra bandeira. E o Benfica viveu o orgulho de só ter jogadores portugueses... E agora o que é que aconteceu? Caiu-se num exagero. Onde estão hoje o Benfica, o Sporting e o FC Porto? O futebol não passa de um negócio. Desapareceu uma certa solidariedade de grupo. Isso fez-me desinteressar pelo futebol, mas também é certo que nunca fui um grande aficionado'.
Pois sim, mas no preciso dia em que a Academia tornou público o seu nome como vencedor do Nobel, um dos seus amigos de infância quando lhe pediram para recordar alguma coisa de si, disse simplesmente: 'Foi o primeiro miúdo do nosso tempo na Azinhaga a ter uma bola de cauchu'...
E ele, desmentindo: 'Você sabe que a nosso memória é a coisa mais suspeita que se possa imaginar. Ela é capaz de inventar coisas que não existiram e passar a acreditar nelas. Até acontece que eu nunca tive uma bola de cauchu. Lembra-me bem de andar por lá a dar os meus pontapés, mas a bola não era minha'.
E concluía, sublinhando o seu gosto, tão próprio: 'Continuo a ter uma forte costela patriótica. Agora se não, por exemplo, espanhóis e defrontarem alemães, eu fico do lado dos espanhóis, naturalmente. O que também não significa muito, porque prefiro sempre aqueles que fazem o seu trabalho bem feito. E se uma boa equipa alemã jogo com uma boa equipa portuguesa, vejo por vezes a minha preferência cair para aquele que está a jogar melhor, independentemente do patriotismo. Com uma excepção, em todo o caso: quando um pequeno jogo com um muito grande, mesmo que jogue mal, estou a favor do pequeno'.
Recordo muitas coisas nestas páginas que aqui assino.
Também, desta vez, Saramago, benfiquista, Prémio Nobel.
E, uma visão de fora do campo, do lado das letras."
Afonso de Melo, in O Benfica
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