"Já houve Benfica-Sporting em quase todas as modalidades; já houve resultados de todos os tamanhos. Mas nenhum chega aos calcanhares do que se disputou no Teatro de São Luiz, em Março de 1924, e deu aos 'encarnados' a «Taça Ausenda de Oliveira».
Em primeiro lugar, as senhoras. Ou a senhora, neste caso. Ausenda de Oliveira. Havia quem escrevesse com Z: nascida na Pocariça, Cantanhede, a 20 de Março de 1888, filha de Isabel Oliveira e Eduardo Raposo.
Maria Isabel da Costa Oliveira, que ganhou a alcunha de Isabel Tainha, foi uma actriz conhecida do teatro português da época e Eduardo um famoso empresário que levava espectáculos um pouco por todo o País.
Ausenda, ou Auzenda (escreverei Ausenda), nasceu no berço certo. Não só ela, aliás. Repare-se: Carmen e Egídia, suas irmãs, também se lançaram na carreira dos palcos; Raul Oliveira, seu irmão foi um violista de méritos; Carmen Oliveira, cunhada, esposa de Raul, era notável acrobata e igualmente actriz.
Uma família de ideias bem definidas.
Em 1924, ano a que se reporta a história que quero aqui contar, Ausenda de Oliveira estava no auge da sua popularidade. E, acreditem, uma popularidade de truz!
A sua estreia fora precoce: Junho de 1904, no Teatro Avenida de Beja, com a Companhia Sousa Bastos, na opereta A Boneca.
Os vinte anos que se seguiram foram mágicos para Ausenda. Revistas como ABC ou Favas Contadas, Dia de Juízo, Ovo de Colombo; mais operetas - Viúva Alegre, Vendedor de Pássaros, Paganini, O Soldado de Chocolate, O Rei dos Sovietes, Enfim!, Sós, Conde de Luxemburgo. Trabalha para diversas companhias: José Ricardo, Armando de Vasconcelos, Luís Pereira.
Representa papéis que ficam na memória dos seus admiradores, nas peças. A Leiteira de Entre-Arroios, O Príncipe Orlof, O Milagre da Aldeia, Baiadeira, Morenhina, A Prima Inglesa. Passa quatro anos no Brasil e ganha mundo e notoriedade. Regressa a Portugal com mais prestígio do que nunca.
A sua voz era bela, de recursos amplos e reconhecidos. Também não fugiu à ópera, actuando na Bohème de Pucini e na Cavalaria Rusticana de Mascagni, por exemplo.
Trabalhou com Palmira Bastos e com Maria Matos - figuras únicas do drama português - em numerosas peças levadas à cena no Teatro Politeama.
A sua popularidade foi incrível e o final da sua carreira penoso e injusto. Viria a morrer em 1960.
Votem! Escolham o favorito!!!
Mas é de 1924 que falamos. Ausenda de Oliveira também já é estrela de cinema: entra no filme A Morgadinha de Val Flor.
No dia 11 de Março, no Teatro da Trindade, a actriz Aura Abranches sai inopinadamente de palco por causa dos dichotes que lhe são lançados no início do segundo acto. O episódio, raro, vale colunas de acusação e desculpas no «Diário de Lisboa» e em «O Século». O povo leva as coisas a peito. Não se brinca com o teatro!
Este último periódico traz nesse mesmo dia à estampa: «É hoje que no S. Luiz se realiza a anunciada Festa da Bola promovida pelos artistas da Companhia Armando de Vasconcelos - António Tavares, Fernando Rodrigues e António Matos, nela disputando a Taça Ausenda de Oliveira pelos clubes de Futebol. A entrega de votos da simpatia pelos clubes de futebol termina no fim do intervalo do primeiro acto, fazendo-se escrutínio no decorrer do segundo. A taça será entregue por Ausenda de Oliveira no fim do espectáculo».
Ou seja, nessa noite de 11 de Março de 1924, no intervalo da opereta Sonho de valsa apresentada no teatro São Luiz com Ausenda de Oliveira como protagonista, os espectadores iam a votos: escolhiam seu clube favorito e o mais votado receberia um troféu. Estranho? Talvez. Mas era o Portugal do início da década de 20, que descobria um fascínio novo pelo futebol que já ombreava e levava a palma às exibições de palco.
A notícia que se segue dá-nos conta da decisão final. Veio publicada no «Sport Lisboa? de 15 de Março: A festa da Bola efectuada no teatro São Luiz alcançou um êxito ruidoso que deve com certeza levar a uma reprise... Os entusiastas do Benfica e do Sporting bateram-se valentemente, tendo-se formado à porta de entrada dois grupos que galopinavam para os respectivos clubes os votos dos espectadores indiferentes. O Sporting contava com um triunfo apoteótico, de antemão assegurado, encontrando-se na sala para os efeitos convenientes os seus elementos mais representativos. O pior é que as lutas eleitorais trazem sempre surpresas e o Sporting, no final da votação, viu-se batido pelo Benfica por uma diferença de mais de 400 votos».
No final: Benfica, 1763 - Sporting, 1321.
Talvez o resultado mais estranho da história da rivalidade entre os dois clubes.
E Taça Ausenda de Olveira para a sala de troféus dos encarnados.
Com essa diferença de mais de 400... Difícil de repetir."
Afonso de Melo, in O Benfica