"Segundo o filósofo Miguel Real, um intelectual de incessante interrogar que não exclui a resposta afirmativa, vivemos, actualmente, um “momento histórico de intervalo, recorrente em todas as sociedades e civilizações em fim de ciclo, entre um passado próximo culturalmente construído sobre regras rígidas, até dogmáticas, e um futuro não muito distante mas de que se desconhece a figuração” (Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa, p- 126). Ora, os momentos de intervalo são propícios “ao devaneio, ao lirismo e ao sonho diurno por que muitos estrangeiros caracterizam a índole do português. No entanto, este devaneio romântico e poético permite-nos “uma espantosa adaptabilidade a novos meios e a novas situações, louvada por Gilberto Freire no livro O Mundo que o Português Criou, de 1940, por Jorge Dias em Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de 1950, e por Francisco da Cunha Leão em O Enigma Português, de 1961.
Esta capacidade de maleabilidade comportamental do português e de adaptação e integração em novos meios, como que recalcando os complexos comportamentais pátrios em que fora educado, tornou-se uma vantagem acrescida na emigração, aclimatando-o com desenvoltura a novos hábitos de vida, lidando tanto com as elites da comunidade que o acolhe quanto com as populações” (op. cit., p. 139). Compreende-se, assim, o que há de grave na omissão, principalmente de carácter antropológico, daqueles que, em linguagem corredia, defendem os êxitos dos nossos treinadores de futebol, no estrangeiro, unicamente pela sua cultura táctica, ou pelo seu conhecimento tecnocientífico.
O que sabemos nós, cientificamente, no futebol, que os outros não possam saber também? De facto, a nossa “forte personalidade espiritual”, traduzida em expressiva comunicação e em leal e simpático relacionamento, permite-nos uma liderança carismática, mesmo no meio de povos com itinerários históricos e culturais muito diferentes dos nossos.
Há necessidade de uma nova cultura do futebol. Com a cultura de massas, com o mediatismo e o hedonismo consumista, findou a “alta cultura” e, porque se tornou fácil saber de tudo; porque são muitos os que se julgam intérpretes de esperanças colectivas - despertam por aí os “falsos profetas”, os bruxos milagreiros, os anunciadores de um novo mítico D. Sebastião que, mais tarde ou mais cedo, vai regressar para resgatar um povo, uma cidade, até um clube. Não há dúvida: “o fútil tem valor de cultura. A época é de indiferenciação dos géneros e de confusão das hierarquias, que distinguiam, ainda há pouco tempo, a cultura nobre da cultura de massas” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A Cultura-Mundo: resposta a uma sociedade desorientada, Edições 70, Lisboa, 2014, p. 126). Assistimos ao triunfo da mediocridade. Há cada vez mais informação, há cada vez menos reflexão e cultura. No romance Bosque Proibido, de Mircea Eliade, encontrei uma página que me ficou gravada, para sempre, na memória. Em Londres, durante a Segunda Grande Guerra, quando os bombardeamentos da aviação alemã se repetiam, dia após dia. Tocam as sirenes anunciadoras de mais aviões, de mais bombas e de um caos indescritível. As pessoas fugiram apavoradas, para os abrigos antiaéreos, diante dos perigos que se aproximavam. As mães cingiam a si os filhos recém-nascidos. O medo tinha a ondulação e a largura de um oceano revolto. No entanto, no meio de um formigueiro de gente que corria desesperada, em direcção à segurança dos abrigos; numa hora de pura irracionalidade onde nada pode refrear o instinto de conservação – um homem curvava-se diante de um livro, indiferente ao zumbido das bombas e ao abismo de desgraças, que se abria à sua frente. Perguntaram-lhe: “Por que não foge você? Não vê que corre perigo?”. E ele, sem tirar os olhos do livro, respondeu imperturbável: “Estou a ler Shakespeare!”…
Hoje, quantos são os que lêem a poesia, ou a prosa, dos escritores de maior realce? Bem poucos! A qualidade quase não conta. O que mais conta é a lógica da mediatização, do marketing, do star-system. “A época hipermoderna é aquela em que os media exercem um poder cada vez maior sobre a vida intelectual, tornando-se vectores primordiais de legitimidade e de consagração dos autores. O reconhecimento pelos pares já não é o único a ter relevância. Concorre com o reconhecimento mediático, que entroniza as novas vedetas dos conceitos e da filosofia best-seller. Agora são os media, mais do que os círculos científicos e intelectuais, que fabricam as celebridades” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, op. cit., p. 128). Não, não digo que a eficácia vale menos do que a especulação; que a teoria, ou uma posição contemplativa, é o que mais importa, no ato de transformar (incluindo a sociedade injusta); que o incessante interrogar, por si só, pode afeiçoar e potenciar a sociedade (e a pessoa humana) aos desígnios dos que procuram a Verdade e o Bem. O que eu pretendo dizer é que a práxis é uma actividade teórico-prática, em que a teoria se vai modificando com a experiência prática e esta, por sua vez, não deve excluir, no seu itinerário, a investigação constante, a denúncia do erro, o juízo de valor… para transformar-se também! A vida tanto deve animar e fundamentar a reflexão como deve ser alimentada e provocada pele reflexão. Em poucas palavras: a filosofia é vida, como a vida é filosofia. A vida portanto não se resume a pura espontaneidade, nem a definitiva imobilidade, porque se trata de um contínuo “fazer-se”… no ato da transcendência! A bruxaria e a feitiçaria usam metodologias distintas das que são típicas da prática desportiva e (pior ainda) sem pontes de diálogo com a ética desportiva, pois que, se são sujeitas aos ditames da razão crítica, não passam de modalidades particulares de trapacice, de burla, de fraude ou dolo.
A sociedade do hiperconsumo precisa constantemente de novos objectos, de acontecimentos espalhafatosos, de notícias mirabolantes. Invadem as livrarias livros de culinária, com pitéus deliciosos e outros livros que nos dizem como viver, com saúde e potência sexual invejáveis, até aos cem anos de idade. Tudo parece fácil, até conhecer Homero ou Petrarca, depois de uma curta viagem à Acrópole ou a Florença. Ora, a ciência da história não se resume a uma viagem apressada a um mundo definitivamente sepulto mas, como “mestra da vida” que é, à reconstituição do que permanece vivo, exemplar, pedagógico, no meio das ruínas que, inevitavelmente, o tempo faz - o que exige paciência e tempo e estudo. Não quero que as minhas palavras revelem qualquer ponta de crítica ou desconfiança, em relação aos extraordinários avanços da tecnociência actual, que a medicina, a farmácia, a astronáutica, o próprio treino desportivo, etc., etc. concretizam e merecem o espanto não só dos especialistas, como até doutros intelectuais de inquieta curiosidade. Nada do que se edificar sobre sólidos alicerces culturais; nada do que for ditado por um trabalho inteligente e diligente; nada do que está inscrito, com imperecíveis letras, na história das ciências – nada destas páginas gloriosas da história da humanidade deixará de receber o meu humilde aplauso. Mas que não se confunda a cultura dos cientistas, dos filósofos, dos escritores, dos artistas, fruto de muito estudo e de muita “prática teórica”, com as experiências apressadas e mercantilizadas do turismo cultural. Como se um corte epistemológico, ou um romance de enredo fascinante, ou uma descoberta científica, fossem as coisas mais triviais deste mundo. Não se condena o turismo cultural, mas antes dele há a concentração exclusiva e apaixonada nas grandes aquisições da tecnociência e da arte e da cultura e do direito, que não se entendem e trabalham, em meia-hora, ou três-quartos-de-hora. Como as vitórias dos grandes treinadores de futebol não se limitam à morte de uma galinha e a meia-dúzia de rezas a Santa Filomena (que aliás nunca existiu). Sinceramente, o futebol, como actividade humana que é, merece mais, muito mais… para ser Ciência e Arte e Consciência!"