1. Foi em Barrocas, a dois passos da Cova da Piedade, que nasceu, por finais de 1921. «Se calhava aparecer em casa com biqueiras de sapotos esfoladas, lá apanhava o meu tabefe, mas nem isso me tirava o prazer de andar pelas ruas sempre a jogar à bola».
2. Antes ainda dos 15 anos, começou a trabalhar numa fábrica de cortiça - e foi jogar para o Liberdade FC da Mutela. Saltou, depois para o Sporting Piedense. Era, então, médio-centro - mas de remate tão forte e certeiro que marcava golos, muito golos. Dirigente do Carcavelinhos desafiou-o para um teste na Tapadinha. Aprovou, para que a transferência se fizesse o Piedense recebeu 300 escudos - e a ele deram-lhe 100 escudos pela assinatura (um par de chuteiras custava 70 escudos).
3. Pouco tempo passou nas reservas do Carcavelinhos - e o que se seguiu foram dois anos a falar-se de si, sem conta, em «exibições extraordinárias».
4. Tinha tio famoso: Silva Marques, que pelo Belenenses ganhara o Campeonato de Portugal por três vezes. Pôs na cabeça levá-lo para lá - e estando a cumprir tropa em Belém, recebeu no Carcavelinhos, carta que lhe aguçou o mistério: convidava-o a visitar a Fábrica Napolitana, assinava-a Guilherme Antunes que nada lhe dizia.
5. Curioso, deslocou-se à fábrica à procura do tal sr. Antunes - que lhe lançou, brusco, a questão: «Queres ir para o Benfica?!» Embatucou, ciciou: «Mas... mas...» Antunes replicou: «Queres ou não quer?» - e ele soltou a insinuar espanto: «Querer, queria...»
6. No dia seguinte, Guilherme Antunes levou-o ao teste no Campo Grande - e, horas depois, emissário do Benfica correu a negociá-lo com o Carcavelinhos. Acertou-se darem-se 10 contos pela sua carta (numa altura em que uma bicicleta das menos caras custava conto e meio) - e espanto foi ouvirem o que dele ouviram: «Eu, de luvas, para mim, não quero nada - só queria esta felicidade de vestir a camisola do Benfica». (A ele pensara-se dar-lhe 5000 escudos - que hoje seriam menos de 3000 euros). Dois anos após, conquistou o seu primeiro título de campeão (foi na época de 1944-1945 - com Janos Biri a utilizá-lo ainda pouco e a médio direito).
7. Não tardou, tornou-se indiscutível na linha média com Moreira e Francisco Ferreira - e em jogo que o Benfica ganhou ao Charlton fez exibição que os ingleses consideraram monstruosa: «Com eles desvairados em busca do golo, saltei com o ponta esquerda, chocámos um no outro. Senti algo a descer-me pelas costas, pus a mão dentro, apanhei coisa dura, quando a bola já fugira de nós, entreguei-lha. Desdentado, disse-me, a sorrir: Thank you, sir! - e tinha sido a dentadura dele que me entrara pela camisola...»
8. Na finalíssima da Taça Latina de 1950 contra o Bordéus (no Jamor) fez meia hora com um pulso partido - recusando-se a sair de campo (mesmo quando a dor o podia vergar mais do que a canseira). Ao minuto 134, Julinho marcou o golo da vitória - e não, não foi ele que recebeu a taça, apesar de capitão de equipa ter sido. A razão, revelou-a Rogério, o Pipi: «Com a invasão e o entusiasmo à solta, ficou tudo louco. Empurrado, fui indo, escadaria acima, entre a multidão em histeria, mas o resto da malta não chegou lá - e quando dei por mim, estava na tribuna diante do Marechal Carmona - e, entre a confusão o PR atirou-me o troféu para as mãos...»
9. Com Ted Smith passara a defesa direito (multiplicando-se-lhe o fulgor). Assim esteve ainda nas conquistas da Taça de Portugal de 1951 e 1952 - e voltando Ribeiro dos Reis a treinador lesão atirou-o para suplente de Artur Santos. Otto Glória chegou - e ouvindo que melhor seria dispensá-lo, recusou: «Quero ver ele em acção». Viu e logo anunciou: «O cara fica. Sei que tem 32 anos, mas vai ser meu defesa direito». (Assim marcou o primeiro golo no Estádio da Luz - não marcou na baliza do FC Porto, marcou-o na sua).
10. Ganhou o Campeonato de 1954-1955 (a Taça também). Ainda foi à selecção que Virgílio lhe fechara anos a fio - e o seu adeus deu-se, enfim, em meados de 1957, com mais um Campeonato (e uma Taça também). Dedicou-se, então, à fábrica de cortiças que abrira com o dinheiro que o Benfica lhe foi pagando - sem deixar de exclamar, comovido, à partida: «Ao sr. Otto eu estou eternamente grato - pois numa altura em que já me tinha condenado, ainda me deu a hipótese de viver tantas mais tardes de glória»."
António Simões, in A Bola