"Quando não havia esta febre mercantil ainda era tempo para nos deliciarmos com o Tour de França ou a nossa exígua Volta a Portugal
1. Há 61 dias entre hoje e o fim de Agosto. Muita água (liquidez) vai correr por debaixo da ponte (defeso). Um tempo para ilusões e desilusões. Tenho para mim que não vale muito a pena ler os variados e fantasiosos «diários do defeso». No fim, logo se verá, depois de decantadas muitas partículas aparentemente noticiosas. Neste longuíssimo período tanta tinta retinta vai dar à estampa uma coisa e o seu contrário. Quando não havia esta febre mercantil, ainda era tempo para nos deliciarmos com o Tour de França ou a nossa exígua Volta a Portugal, ou ainda uma competição internacional de hóquei em patins. Agora é só bola, mesmo que para se concluir por «bolas».
O defeso passa por várias e distintas fases. Começa no modo perguntar, depois passa para a fase de arrolar uma longa série de jogadores estrangeiros que quase ninguém havia ouvido ou lido, até que surge a bomba de um nome indecifrável, acompanhado de um vídeo de meia-dúzia de momentos gloriosos e, obviamente, sem o resto. É o tempo em que ouvimos certos especialistas falar deste ou daquele craque como se os tivessem acompanhado desde pequeninos. Depois vem o modo quase, às vezes fungível com o modo abortar (o negócio). Pelo meio, há o mini-mercado de trocas e baldrocas onde empréstimos são muitas vezes uma forma de condicionar o mutuário face ao mutuante. Antes do fim, há o mercado secundário ou período de saldos, aproveitados avidamente pelos que não têm acesso ao mercado primário. Por fim, chega o modo mais excitante, qual seja o do leilão de última hora no dia 31 de Agosto, onde já não há tempo para manobras de diversão e espaço para especulações mediáticas e onde é, tão-só, pegar ou largar.
Neste mercado, há um ponto que sempre me intrigou. O de se concretizarem transferências que, afinal, não o irão ser. O clube A adquire o passe de um certo jogador, para nem sequer vestir o seu equipamento, pois logo é recambiado para um outro clube por empréstimo (que até pode ser o clube onde o atleta já estava...). Poderíamos chamar-lhe «transumância». Isto, evidentemente, quase sempre acompanhado de declarações arrebatadoras do jogador em causa com aquela pitada de amor eterno à camisola que (não) vai vestir... Porque mais atento ao Benfica, cito, por exemplo, Cádiz que veio do Vitória de Setúbal e que parece - a fazer fé nas notícias - irá jogar num terceiro clube, sem passar pela Luz.
2. Como atrás referi, há uma expressão muito curiosa e que agora é um modismo do defeso. Refiro-me ao verbo perguntar. Todos os dias há notícias sobre clubes que perguntam por jogadores (mais raro é jogadores perguntarem por clubes, antes perguntam por euros). No mercado, perguntar é, nã raro, um verbo usado para substituir a falta de um substantivo, a verba. Às vezes, creio que se pergunta não sei a quem. E, de vez em quando, dá a sensação que se trata apenas de perguntar por perguntar. Outras vezes pergunta-se para que outros deixam de perguntar ou continuando a perguntar o preçário pós-pergunta seja influenciado. Por exemplo, «O clube X perguntou pelo jogador A», é, cada vez mais, uma forma de fabricar uma novidade, de lançar um isco, ou de atiçar uma putativa concorrência. Perguntadores há muitos: é fácil, é barato e, às vezes, dá milhões. Emerge uma nova classe profissional: os perguntadores remunerados em função da sua maior ou menor língua de perguntador, mesmo que as perguntas sejam de algibeira (aqui no sentido literal). Neste contexto, vem-me à memória Vergílio Ferreira: «Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta».
3. Divirto-me também com outro verbo: «explodir». «É este ano que este jogador vai explodir!», assim ouvimos e lemos amiúde, depois de devidamente decretado e certificado pelos magos do futebol. Eis em toda a sua explosão (ou será implosão?) o esplendor do defeso de Verão. Entre duas épocas, explodir é a mensagem e a esperança. A sorte e probabilidade. O preço e a pressa. O retorno e o entorno. Alguns explodem tanto no defeso que esgotam as munições e têm de mudar de ares para tentar explodir com novo oxigénio. Outros explodem de tal sorte que desaparecem. E ainda outros, coitados, explodem em jeito de fogo preso. É, por isso, que não sabem conjugar o verbo explodir, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, dizendo «explodo» em vez de expludo. Na explosão, como regra, não há fumo sem fogo e fogo sem fumo. É o que vemos com o fogo-de-artifício de quem dela beneficia. E, ao que leio, há clubes onde ainda não há explosões, mas há foguetório, com estampido.
4. O defeso é, de facto, muito imaginativo. Às vezes, até por não ter imaginação nenhuma. Ainda há dias, li as ousadas declarações de um craque recém-contratado que me impressionaram: «Posso acrescentar garra e vontade de ganhar» (coisa que até eu poderia acrescentar...). Li também uma notícia que assim rezava: «Reine-Adélaide colocado no radar». Ao princípio pensei que se tratava de uma rainha de ascendência francesa. Depois vi que se tratava se um jogador, só não percebi se era ele que ia para o radar ou se foi o radar que o detectou. Há outra figura do defeso que me faz lembrar uma involução matemática: refiro-me aos atletas que assinam para ficar num clube, mas saem, ou os que, não saindo, não assinam por onde ficam. Dois exemplos dos últimos dias, ainda a procissão vai no adro: «Miguel Oliveira renova e sai» (quase um paradoxo, a não ser que renova seja a referência a uma marca comercial de papel higiénico) e «Alef renova e é cedido» (coitado, neste caso nem sai, é apenas cedido). Li também que «Premier League não larga Marega», um título que tem a vantagem de não ser desmentido por nenhum dos 20 clubes da mesma.
Na semana passada, o MVP do defeso foi Bruma. Vejamos só algumas manchetes. 21 de Junho: «Bruma prefere o Dragão» (O Jogo). 22 de Junho: «Bruma desviado para a Holanda» (A Bola). 23 de Junho: «Dragões não desistem de Bruma» (A Bola). 25 de Junho: «Bruma quase Dragão. Oficialização do negócio iminente» (O Jogo), «Dragão ao ataque: Bruma assina pelo FCP até 2024. Prevaleceu a vontade do jogador» (A Bola). 26 de Junho: «Bruma volta a complicar-se» (A Bola), «PSV enviou emissário a Lisboa, mas não deu a volta a Bruma» (O Jogo). 27 de Junho: «... Bruma escapou para o PSV de madrugada» (O Jogo), «PSV desviou Bruma em raide nocturno» (A Bola), «Bruma fugiu para Eindhoven» (Record). Passando ao lado do tamanho dos caracteres na capa de O Jogo e Record que são bem eloquentes no anúncio da chegada e quase microscópios nos desmentidos seguintes, este caso - como tantos outros - é uma boa prova do carrossel de rumores, meias-notícias e variações ao minuto em que o defeso é pródigo para compensar a ausência de competições a sério. Isto para já não falar dos «mercados» e «transferências» televisivos onde é o mesmo, mas em escala logarítimica. Enfim, bruma não falta ao defeso. Entre a bruma nortenha e a bruma dos Países Baixos, o que contou foi a espessura do nevoeiro cerrado no sonho de uma noite de Verão.
Contraluz
- Citação (I): De Valdo notável e inesquecível jogador do Benfica nas décadas de 80 e 90: «Quando se fala em Benfica eu ponho-me logo de pé» (em A Bola de 30/6).
- Citação (II): De Jorge Jesus «Hoje o Fla é mais falado lá (em Portugal) do que os três grandes» (em A Bola de 30/6).
- Competição: Os Jogos Europeus, uma invenção recente de um acontecimento que, notoriamente, está a mais. Querendo, pomposamente, ser uma espécie de Jogos Olímpicos Continentais (tipo 2.ª divisão), descaracterizam alguns desportos (o atletismo é um deles) e não despertam grande interesse. Este ano, na Bielorrússia, com estádios às moscas e um notório desinteresse geral, num país de tradição autocrática. Valha-nos a boa prestação dos nossos compatriotas.
- Confusão: A portuguesa Fu Yu conquistou a medalha de ouro no ténis de mesa feminino nos Jogos Europeus derrotando a alemã Han Ying na final. Assim vão as nacionalidades desportivas...
- Discriminação: Vai começar o Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins, na cidade de Barcelona. Dantes, era um acontecimento. Agora é um esquecimento. Tudo diminuído pelo futebol totalizante.
- Fiasco: A Copa América tem sido um completo fiasco. Jogos sonolentos, bancadas quase vazias no Brasil do futebol. Acresce essa estranha inovação de haver dois países asiáticos convidados (Japão e Catar) para acrescentar aos 10 países sul-americanos e substituir-se aos outros dois que nunca competem (Suriname e Guiana). Imagine-se se o Japão ou o Catar fossem mais que «damas-de-companhia» e vencessem a competição... sul-americana. O futebol até a geografia atropela!"
Bagão Félix, in A Bola