"Não é preciso mudar muito para que quase nada fique na mesma. Fernando Santos mexeu no cérebro da seleção, quando tantos lhe pediam que acrescentasse pulmão. Foi a sua melhor decisão, a partir das eliminatórias decisivas para o Mundial realizadas no Dragão e com sequência nestes jogos felizes da Liga das Nações. A ilustração perfeita para a mudança que se operou está no passe luminoso de Rúben Neves para Bernardo Silva no segundo golo aos checos. Claro que agora todos veem Bernardo como expoente, quando ainda há um ano e pouco, naquele Europeu tardio de futebol português triste e falho, lhe apontavam deficiências sem bola e aquiesciam a que fosse sempre o primeiro substituído, naquela tentação desgraçada, mas comum a tantos treinadores, a que chamei então “síndrome do criativo cansado” (que o talentoso é vezes demais o primeiro a sair, como se se cansasse mais que os outros e não continuasse a pensar melhor). No entanto, a segunda assistência do nosso novo esquerdino genial só aconteceu porque, no momento anterior, Rúben Neves o identificou entrelinhas e onde pôs os olhos, como tantas vezes faz, colocou também a bola. Estava ali, naquele momento, a razão definitiva dos que sempre acreditaram que sem mexer no meio campo nada mudaria na seleção portuguesa, sobretudo em termos de qualidade de jogo. Os resultados são outro tema, que se pode sempre ganhar jogando mal, sobretudo quando se tem muito bons jogadores, mas essa é a discussão inútil que pouco adianta, são voltas perdidas em redor do óbvio.
Acontece que mexer no meio campo não é apenas trocar um jogador por outro, o x peloz, é sobretudo fazer a opção definitiva entre um meio campo para conter e um meio campo para jogar. Por isso pertenci à imensa minoria – de comentadores e adeptos – que, reconhecendo inegáveis competências a qualquer dos jogadores que cito, nunca vi Palhinha (ou Danilo) mais Renato Sanches (ou até Matheus Nunes) como opções prioritárias para resgatar o melhor jogo português. Do mesmo modo, sempre me incomodou o coro crítico e fácil em redor da lentidão de William Carvalho, da veterania de João Moutinho, da falta de poder para “segurar o meio campo” de Rúben Neves ou, desculpem a insistência mas não resisto a repeti-lo, porque foi muitas vezes difícil de contrariar, da escassa robustez de Bernardo, que nem sequer o recomendava – pasme-se! - para jogar em zonas interiores do campo.
Decidir entre um meio campo para jogar ou para conter também é decidir entre assumir iniciativa ou viver na expectativa, valorizar o talento próprio ou priorizar a anulação do rival, no limite, fazer a escolha entre a coragem ou o medo. A seleção é hoje mais corajosa, ousada, e está mais perto de ser feliz. E não há como negar: seria um sacrilégio não pensar primeiro no próprio jogo, no que se pode fazer com bola, quando se tem para colocar adiante do médio centro (podendo algum deles funcionar como alternativa a esse primeiro elemento) gente da qualidade de William, Vitinha, Moutinho, Otávio, Fábio Vieira, Bruno Fernandes, acima de todos Bernardo e mais à frente ainda Félix, Guedes, Jota, Leão, Horta, além de Ronaldo (que perto da baliza continua o melhor). Arquimedes disse que com um ponto de apoio moveria o mundo. Fernando Santos atualizou a lei da alavanca quando passou Rúben Neves de quarta para primeira opção no meio-campo, finalmente. E até deu a prova definitiva de que queria mesmo mudar de perfil quando, não o tendo, escolheu Moutinho como alternativa em jogos de risco máximo. O jogo português mudou para melhor nesse momento. Os últimos jogos contam histórias diferentes, em função dos adversários de perfil diverso e da obrigatória rotação de jogadores, mas a seleção nacional surge mais alegre em campo e o povo mais feliz a vê-la jogar. Daí a festa em tempo de Santos. E ainda com Fernando ao leme, o que a muitos também já parecia improvável."