"O futebol é por si, um fenómeno apaixonante. Catapulta emoções e consagra em cada um dos seus fervorosos adeptos um treinador, um jogador, um expert em contratações, um presidente.
Um conhecimento transversal dos mesmos que possibilita extensas horas de discussão sempre que a redondinha reúne amigos à volta da mesa. Rivais trocam galhardetes, jornalistas e opinion makers tecem teorias e deslindam factos, cada um com a sua fonte mais privilegiada. Tudo isto faz parte do fenómeno e será, quando doseado, saudável. Alimenta o negócio, fomenta o interesse televisivo, move multidões.
Porém, o futebol tem um lado pernicioso, obscuro, que se reflete no mais cristalino que a sociedade tem, ou deveria ter: as crianças.
Jovens sonhadores que alimentam o sonho de pisar um dia grandes palcos, ser como Cristiano Ronaldo ou, como escreveu Carlos Tê, «voar como o Jardel sobre os centrais». As crianças, elas e de uma forma única, transbordam de felicidade quando encontram uma bola, seja ela a última réplica de uma de uma final europeia ou uma simples folha de papel com uma forma geométrica ainda por descobrir, mas que role e sirva o propósito.
É este sentimento genuíno que alimenta o negócio de milhões, mas é também neste sentimento explorado por interesses paralelos e comerciais que se apresenta o lado mais negro do jogo, o futebol de formação.
As crianças tornam-se ativos de empresas de milhões.
Reflita-se, são crianças. Crianças que potenciam sonhos de treinadores, desejos de empresários, expectativas de familiares. E tudo isto nos ombros de quem se deveria apenas preocupar em carregar - e já não é pouco - peso dos livros escolares.
Crianças que hoje são colocadas num pedestal mas que no ano seguinte são atiradas para uma lista de excedentários. Crianças que são dispensadas, mas que o clube - «porque afinal se desenvolveu e cresceu -, volta a convidar no ano seguinte para se juntar aos seus «ativos».
Neste dançar de cadeiras, ignoram-se relações afetivas. ignoram-se dinâmicas escolares, ignora-se afinal o afamado «superior interesse da criança». Porquê? Por um interesse comercial nesta fase meramente potencial.
Sabendo desta cegueira especulativa que afeta em primeira linha as crianças, procurou o legislador um caminho claro: proteja-se quem menos se consegue proteger.
A Lei proíbe por isso que os empresários desportivos representem menores.
A Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, que estabelece o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação, teve neste particular um papel fulcral. Louva-se que essa preocupação tenha existido, uma vez que cabe àqueles que ditam «as regras de jogo» ter uma visão completa do fenómeno e não apenas do élan dos grandes ecrãs.
Começando pelo fim do diploma, é possível de forma evidente constatar uma proibição absoluta da representação de menores por empresários desportivos. Não são abertas exceções, nem permitidos entendimentos difusos. A a lei é clara: «É vedada ao empresário desportivo a representação de praticantes desportivos menores de idade».
Sem pejo é esclarecido e estabelecido esse limite. Não permite assim a lei a aproximação de empresários desportivos - os comumente chamados «agentes». Com este caminho, a lei não procura classificar o «agente» como um parente mau do futebol, mas sim, retirar da esfera de desenvolvimento da criança um elemento vetor do espetro especulativo.
A Lei que reconhece o «agente» e lhe dá dignidade legislativa tem em mente que a criança deve, até atingir a maioridade, estar afastada do negócio e de um dos seus atores.
Seguidamente procura ainda a lei possibilitar que os jovens a partir dos 14 e até aos 18 anos celebrem contratos de formação. Contratos esses que revestem um maior peso no percurso formativo da criança. É habitual, e com grande pompa e circunstância, que se anuncie que aquele jovem que se destaca no seu escalão «já tem contrato de formação». É já um «ativo», com dimensão contratual.
O contrato de formação pode a todo o momento ser denunciado.
Não será, por isso, o contrato de formação um contrato tão rígido e verdadeiramente protetor do «ativo». Vejamos a lei: a denúncia por iniciativa do formando desportivo pode ser feita, independentemente de justa causa para o efeito, mediante declaração escrita com aviso prévio de 30 dias.
Assim, e apesar de amplamente contestada no momento de elaboração da lei, esta singela alínea abre portas a que a criança possa a todo o momento e no seu superior interesse denunciar o seu contrato de formação.
E será então o contrato - ainda que tudo corra bem - um instrumento vinculativo sem limites nem condicionantes, ou, por outro lado, uma realidade também ela protegida e claramente balizada? Não só do menor mas, também (e a lei aqui foi ainda mais longe) do jovem adulto?
Sem desiludir, a lei procurou prescrever uma duração determinada do mesmo, não fugindo ainda à salvaguarda da obrigatoriedade - assim as partes o queiram -, da renovação do vinculo de formação por um vinculo profissional (ou de formação com duração reduzida) assim que o menor atinga os 18 anos.
O contrato de formação desportiva caduca no final da época em que complete 18 anos.
Ainda que o contrato de formação deva sempre ser assinado também pelo representante legal do menor, a lei procurou esclarecer que entre os 14 e os 18 anos terá sempre a duração mínima de uma época desportiva e máxima de três épocas desportivas, podendo ser prorrogado por mútuo consentimento.
Todavia, poderia ser assumido que - por exemplo - um menor com 17 anos poderia celebrar um contrato de formação por um período de três épocas desportivas, o que originaria que aos 20 anos o jovem jogador ainda teria um contrato que negociou numa tenra idade.
A Lei, ciente dessa possibilidade, esclareceu e automaticamente definiu que o contrato de formação caduca - sem mais e independentemente do seu termo - no final da época em que o menor complete 18 anos. Iso sem prejuízo de poder nesse momento ser celebrado um novo contrato de formação, mas neste caso com duração máxima de uma época desportiva.
Apenas 1 por cento das crianças das academias de formação de topo chegam à Premier League.
Existe uma explicação para o tratamento radical que a lei dá. Essa explicação pode ser retirada - ainda que de uma forma indireta - das conhecidas declarações de Arsene Wenger, que divulgou dados dramáticos sobre as perspetivas de um jovem jogador: 67 por cento dos jogadores que tinham contrato nos clubes de topo da Premier League com idades compreendidas entre os 16 e 20 anos, aos 21 anos já não jogavam futebol.
Focando apenas nas academias de topo - apenas 1 por cento dos jogadores dessas academias chegavam à Premier League, pelo que, à contrariu sensu, existem 99 por cento dessas crianças que estão sujeitas à especulação, à pressão do sucesso e à responsabilidade exorbitante para sua idade, quando na verdade o futebol será apenas (e tanto) um desporto que marcou a sua infância.
A preocupação da lei é equilibrar a dinâmica do futebol e de uma forma rígida estabelecer limites para que os 100 por cento possam crescer num ambiente protegido, onde apenas 1 por cento pode ter a sorte de ter sucesso."