"O nome de Craig Thompson ressoa pouco, dirá ainda menos a quem puxa com afinco o lustro às memórias futebolísticas. No raiar dos anos 90, colava telefones à orelha e redobrava-se em chamadas para jornais espanhóis e franceses, azucrinando o juízo a jornalistas, gastando-lhes o nome com a súplica em forma de exigência para que deixassem de chamar “La Liga de Campeones” ou “Le Ligue des Champions” à recém-intervencionada prova que acabara de se levantar da mesa de operações. O tom das respostas que lhe vociferavam do outro lado era pouco simpático: “Ouvia ‘seu fuck*** americano, somos franceses, não nos digas para a dizermos em inglês’.”
A defesa hoje evocada por Thompson, três décadas feitas desde a reformulação da Taça dos Clubes Campeões Europeus, é que a sua insistência durou “uns três ou quatro anos” por ser “uma questão legal” e, mais pertinentemente, por se tratar dos “esforços” feitos para “promover a marca”. A escolha de palavras feita pelo antigo diretor da TEAM, empresa que tratou do processo de rebranding, não é inocente, muito menos descabida. “Estava no nosso ADN que a marca era sagrada”, disse, há dias, à “The Athletic”. A marca, não a prova em si, tinha que ser impulsionada, liguem os propulsores e apertem os cintos.
Com o tempo, fomos aprendendo as chorudas repercussões da profunda cirurgia plástica de 1992, da qual a Liga dos Campeões, ups, perdão, a Champions League, não vá o chicote do branding vergastar-nos, se refastelou. Feita crescer a marca, as receitas da UEFA escalaram a cada ano e concomitantemente o prize money para os clubes: em 2006/07, o AC Milan, equipa que mais dinheiro recebeu, levou quase €40 milhões pela sua participação, quantia insuflada para os cerca de €135 milhões colecionados pelo Manchester City em 2022/23. Esta época, mais de €2,4 mil milhões vão ser distribuídos pelos 36 clubes, um aumento de €400 milhões, ou 22%, face ao que foi pago às 32 equipas na edição passada. A regalia endinheirada aumenta, claro, porque as receitas da casa-mãe vão engordando.
Em 2023, a UEFA fez pouco mais de €600 milhões em receitas comerciais além de qualquer coisa como €3,5 mil milhões pelos direitos televisivos, um dos lados da máquina por onde se veem as consequências de lastimar do crescimento sem freios da prova que engole tudo em seu redor. Estilizada ao máximo, posta a sua marca a render na saliva derramada no apetite de marcas esfomeadas por aparecerem nos espaços da Liga dos Campeões, a competição vai exigindo um pouco mais de toda a gente - no fundo, porque cresceu tanto que pode fazê-lo.
Havendo nesta temporada mais jogos (cada equipa terá, no mínimo, oito na fase regular), a UEFA vendeu mais caros os pacotes dos direitos televisivos a cada país. Em Portugal, terão rondado os 20 milhões de euros para o ciclo 2024-2027, um aumento de 30 ou 35% face ao anterior, estimou Jorge Pavão de Sousa, diretor-geral da DAZN, em entrevista ao “Record” no mês passado. Pagando os operadores mais pelas partidas da Champions, mais será exigido à carteira dos adeptos, ou melhor dizendo, dos consumidores. Quem paga para transmitir o futebol tem de reaver o investimento algures e tal vai recair em quem deseja ver futebol pela televisão, quiçá não se preocupando de imediato no que este aumento geral dos euros causa no ecossistema da bola.
Longe de ser um problema de agora, esta reformatação da Liga dos Campeões acaba por ser uma resposta da UEFA em moldes não tão distantes assim dos que 12 clubes quiseram, em abril de 2021, levar avante na então assustadora e criticada ideia da Superliga, enterrada quase à nascença pelo alvoroço geral que suscitou por ser uma competição fechada e a convite, casulo que esta ‘nova’ Champions que arranca esta terça-feira não o é, por definição, mas cada vez mais o será por elitismo.
O aumento gradual dos prémios de jogo foi indo, com o tempo, para um constante grupo de mais ou menos os mesmos clubes. Os já mais endinheirados pelas suas massas de apoio (Real Madrid ou Barcelona são exemplos), por terem a sua história em regiões ricas (Bayern de Munique), por existirem em campeonatos que colheram os frutos da mesma lógica de tornar uma competição numa marca apetecível (quem está na Premier League) ou os que se abriram a abastados zilionários com reservas de dinheiro sem fundo, que investiram para tornar os clubes em potências (os rendidos ao Médio Oriente que são o PSG e o Manchester City) ou fortalecer ainda mais os que já o eram (o Liverpool ou o Manchester United, detidos por conglomerados norte-americanos).
Existindo um lote de uma dezena e pouco de clubes com orçamentos gigantes e receitas anuais enormes, repletos de uma capacidade em pagar e gastar quantias absurdas, não só as etiquetas do preço coladas aos futebolistas aumentam, como os melhores jogadores tendem a ir para estas equipas, reforçando a probabilidade de se qualificarem para a prova europeia mais apetecível e de nela chegarem longe, recebendo então mais dinheiro por cada vitória (€2,1 milhões esta época) e fase da competição galgada. É um efeito cascata que esta Liga dos Campeões não amenizará. Indo mais dinheiro para o grupo seleto previsível, mais esforço será exigido a quem, como os clubes portugueses, tem de acompanhar os custos de vida no futebol.
O apetite papão da UEFA não cessa e o maior dos efeitos é sugar as provas que habitam com ela na Europa, sejam campeonatos nacionais ou as outras competições da entidade, onde a retribuição paga aos clubes é incomparável. Excetuando a Premier League, com o seu próprio cosmos milionário que só as suas novas regras de controlo financeiro pareceram abrandar, recentemente, o contágio para o mercado - os clubes ingleses têm cada vez mais músculo endinheirado por comparação com equipas de outros países -, a água da cascata faz com que, nas ligas internas, o fosso entre os que jogam na Champions e quem não se qualifica tende a agravar-se também.
Quando, a partir desta terça-feira, passaremos a ter seis jogos por dia e três vezes por semana, o transe compreensivelmente provocado pelo espetáculo da marca que se vendeu, nos anos 90, como sendo o palco para os confrontos entre os melhores clubes do futebol eurocêntrico, a incessante voragem por mais, mais e mais da prova-rainha continuará indiferente às consequências que vai causando. Já nem parecemos ligar ao desvirtuar da natureza do próprio nome, Liga dos Campeões, que há muito deixou de ser exclusiva aos de facto campeões nacionais da Europa, onde os da Roménia, da Eslováquia, da Geórgia ou da Eslovénia começam a jogar na masmorra da 1.ª pré-eliminatória, logo no início de julho, relegados para lá pela UEFA que regozijou com as façanhas das suas seleções no último Europeu. Aí, aplaude os davids que mordem os calcanhares aos golias.
Na Liga dos Campeões, a prioridade é a fome por mais. Perdão, na Champions League."