"A liberdade de expressão que a democracia consagra não legitima a ofensa nem o insulto. É que a democracia não é o sistema político do caos.
Invocar o 25 de Abril e a democracia, em nome da liberdade ao livre insulto e à ofensa, é uma infâmia para o 25 de Abril e uma manifestação da mais profunda e obscura ignorância sobre os valores fundamentais da liberdade.
A democracia não é o sistema político do caos, do direito à irresponsabilidade dos actos e da consagração do ataque ao direito dos cidadãos ao seu bom nome.
Nenhuma sociedade organização resistiria a esse caos e o futebol também não. Daí que seja necessário colocar um travão na crescente irresponsabilidade das afirmações e das ofensas que por aí se fazem de forma gratuita e livre, compensando os difamadores, os terroristas da palavra, os instigadores do ódio e da violência.
Por isso, é para mim indiscutível que o presidente do Benfica faz bem em definir uma política oficial de recusa em entrar nessa guerra destruidora do futebol e que só acontece por quase absoluta impunidade dos responsáveis.
Pode dizer-se que é uma manifestação hipócrita, uma vez que o mundo da comunicação tem muitos exemplos de benfiquistas, com ou sem responsabilidades nos órgãos do clube, que garantem o lado bélico dessa comunicação, mas é também óbvio que o controlo dessas situações deve ficar ao juízo dos órgãos certos: no mundo civil, os tribunais; no mundo desportivo, a justiça desportiva. Uns e outros devem exercer as suas funções com competência e rigor.
Sempre tem havido, em Portugal, a má tradição de desresponsabilizar os culpados, dizendo que, afinal, todos somos culpados, os dirigentes, os treinadores, os jornalistas, os roupeiros, o povo do futebol. Mas não é verdade. Há uns que são culpados e outros que são inocentes. Numa sociedade justa e livre torna-se necessário julgar e penalizar os culpados e ilibar de responsabilidade os inocentes.
Parece simples, mas, em Portugal não é assim tão simples e no futebol português é, ainda, mais complicado.
Por isso se tem assistido, nos últimos tempos, a uma constante subida do tom na escala de violência dos discursos. Alguns, a aparecem travestidos de uma falsa linguagem de coragem, assentam apenas numa manipulação oratória de raiz populista, ocos de conteúdo e de argumentos, que apenas tendem a acender de paixão, mas também de ódio, os corações dos adeptos menos racionais.
Os objectivos sãos os de sempre: desresponsabilização dos maus resultados desportivos, criação de um clima de medo e de perturbação que permitem o beneficio do infractor.
Não há, aliás, muito de original, nisto. A história do futebol português está cheia de episódios destes, em que a poeira e o ruído dos discursos inflamados e dos apelos mais ou menos declarados à cegueira dos homens, em nome do amor ao clube, determinaram tempos negros e que não podem, nem devem ser esquecidos.
Nesse aspecto, a história repete-se. Em farsa, dirão alguns que aligeiram a situação. Sim, mas em farsa que pode vir, em qualquer altura, degenerar em tragédia.
A acontecer, virão as carpideiras do costume condenar os excessos de todos e a irresponsabilidade crónica das pessoas do futebol. Lamentar os acontecimentos e rezar, pelas vítimas, três 'Pais Nossos e cinco Avé Marias'. Aliviarão, assim, as más consciências.
Prefiro alertar antes para a alta probabilidade de numa altura em que o campeonato estiver mais aceso de emoções e de paixões se possa instalar um clima de violência preparada e criada, ao longo dos meses, por esses terroristas da palavra.
Julgarão alguns que defendo um estado policial para o futebol. Não. Defendo, apenas e só, um estado de direito em Portugal.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola