"«A Bola» assinalou condignamente a efeméride do acontecimento que marcou, de forma incontornável, o futebol português. Cumpriram-se 50 anos sobre a chegada de Eusébio a Lisboa e ao Benfica. Sendo um facto que o Benfica, no ano anterior, sem Eusébio, já tinha sido conquistado a sua primeira Taça dos Campeões, não deixa de ser verdade que, com Eusébio nas fileiras, o Benfica se transformou num emblema mítico nacional e internacionalmente.
Os sportinguistas lamentam há 50 anos o desvio para a Luz do jovem moçambicano, promessa do Sporting de Lourenço Marques, e especulam sobre o que teria acontecido no futebol português se Eusébio em vez de ter assinado pelo Benfica tivesse assinado pelo Sporting.
É uma especulação que se justifica plenamente. Para os sportinguistas com certa mágoa, para os benfiquistas com uma grande dose de alívio.
Mas é hoje que vivemos. No presente. E no presente, tendo em conta a realidade em que se vive, é caso para que as gerações mais novas possam considerar, com toda a legitimidade, que se Eusébio tivesse vindo para Lisboa para ser jogador do Sporting não demoraria mais de seis meses a ser transferido para o FC Porto, ou cedido, ou trocado ou mesmo na condição de «maça podre» ou de qualquer fruto de sabor mais tropical e Índico.
Mas eram outros tempos, não duvidem.
Em 2010, Domingos Paciência veio com o seu Sporting de Braga à Luz por três vezes e por três vezes perdeu. Aconteceu a 27 de Março para o campeonato de 2009/2010, a 3 de Outubro para o campeonato corrente e no domingo passado para a Taça de Portugal.
Domingos que ao longo da sua interessante carreira como treinador já lhe ocorreu perder por diversas vezes com o FC Porto e nunca soltou um «ai» e que até conseguiu cometer a proeza ética de «estar a olhar para o chão» quando Ricardo Quaresma foi expulso num inesquecível Leiria-FC Porto, pois o mesmo Domingos sempre que perde com o Benfica choraminga a valer.
Foi o que aconteceu no domingo passado. O Sporting de Braga que, tal como o Benfica, está longe dos fulgores da época passada, só por uma vez causou perigo na casa dos campeões obrigando Júlio César a uma defesa impossível. Mas Domingos entende que foi eliminado porque jogou contra 11 quando devia ter jogado contra 10 já que, na sua opinião, David Luiz devia ter sido expulso, porque «meteu a mão» na cara de Alan.
É um caso discutível, sem dúvida. Menos discutíveis, no entanto, terão sido as entradas de Sílvio sobre Gaitan e de Paulão sobre Saviola.
Só que Carlos Xistra, esse grande benfiquista, devia estar com os olhos no chão.
Manuel Fernandes, quando foi jogador do Sporting e quando deixou de ser, nunca se preocupou em iludir o seu sportinguismo de génese em nome dos compromissos profissionais. E agora que é treinador já com uma carreira provecta continua igual a si próprio, genuíno.
Era de esperar que antes do jogo com o Sporting, para a Taça de Portugal, os jornalistas mostrassem curiosidade em saber das palpitações do coração-de-leão do técnico. A todos respondeu, antes e depois do jogo, sem escusar. Antes do jogo reafirmou - como se fosse preciso... - a sua afeição pelo clube adversário e o desejo de o vencer no Bonfim. Depois do jogo, com a mesma pacatez, disse tudo numa frase curta: «Adorei ganhar ao meu Sporting.»
O futebol, no entanto, provoca entre os adeptos estados de espírito que vão contra a lógica das ciências exactas.
Assim, se houvesse um sportingómetro para medir a intensidade da paixão pelo clube, é caso para se dizer que, neste fim-de-semana, os sportinguistas descoroçoados pela eliminação da Taça de Portugal deram mais valor e mostraram mais considerações pelo espírito leonino do seu ex-capitão e actual treinador do Vitória de Setúbal, que foi o seu carrasco, do que ao fervor também leonino de Maniche que representa presentemente o clube e esteve em acção (pouca) na noite de sábado no Bonfim.
É também normal que, quando as coisas não correm bem, os adeptos tendam a eleger um jogador para embirrar. Torna-se, sem dúvida, menos cansativo do que embirrar com todos os jogadores. No Benfica, por exemplo, os adeptos tê,-se entretido esta época a embirrar declaradamente com César Peixoto, vá lá saber-se porquê...
Em Alvalade, onde o sportinguismo de Maniche foi saudado com ênfase de uma nova e radiante aurora, o tal sportingómetro acusa agora, depois de uma série de infortúnios bem mais colectivos do que individuais, uns índices bem baixos para quem foi recebido como um portento de leão. E com valor acrescentado visto que Maniche era suposto transmitir ao restante plantel tudo o que aprendeu na escola do FC Porto que é a escola que mais e melhor impressiona a gerência da dupla Bettencourt-Costinha.
Maniche, cujo profissionalismo nem se discute, tal como o profissionalismo de Manuel Fernandes, já deve andar desconfiado desta situação. Ainda anteontem, numa entrevista ao Record, lamentava que o Sporting tenha que viver «todos os dias» sob as «críticas de falsos sportinguistas», entre os quais não se inclui por muito que os insatisfeitos de Alvalade lá o queiram incluir.
Na noite de sábado passado, vendo o Vitória de Setúbal-Sporting por entre uma assistência plural em termos de afectos clubistas - digamos que éramos 5 adeptos do Vitória e 2 do Sporting, todos sentados em frente ao televisor -, interroguei-me em voz alta, já no final do jogo, porque estranha razão Manuel Fernandes, sendo um competente treinador sportinguista, nunca tinha treinado o Sporting...
Mandaram-me imediatamente calar os sportinguistas que nos faziam companhia. E com razão chamaram-me de ignorante. Recordaram-me, então, que Manuel Fernandes já tinha sido treinador do Sporting por alguns meses no início do século XXI. Pois, francamente, não me lembrava... e agradeci muito o esclarecimento.
É bom ter amigos de todos os clubes que, com o que sabem das suas culturas próprias, impedem as nossas imbecilidades de sair do círculo estritamente familiar e pessoal.
É esta a moral da história.
PS: Por exemplo, anteontem, nas páginas deste jornal, ficou provado que já o Miguel Sousa Tavares não teve a mesma sorte. Isto é, a sorte de ter quem o corrija em privado e que, consequentemente, o impeça de proferir inocentes intrujices em público. Escreveu o nosso literato a propósito de... basquetebol, um tema tão bom como outro qualquer: «Jorge Araújo, treinador que deu ao Benfica vários títulos nacionais, antes de rumar ao FC Porto(...)»
Ora, ao contrário do Manuel Fernandes que já foi treinador do Sporting, o professor Jorge Araújo nunca na vida foi treinador do basquetebol do Benfica. Nem do andebol. Nem de xinquilho."
Leonor Pinhão, in A Bola