"Quatro a zero em golos; quatro bolas nos postes: em Setembro de 1957 o Benfica despedaçou o Barcelona, no Restelo. Até aí perdera todos os jogos com os catalães: dolorosamente.
FC Barcelona: só o nome assusta, mete medo. Mas não é de hoje. O medo vem de longe, muito longe. De 1957, por exemplo. Em Setembro de 1957 o Barcelona estava em Lisboa. E já era um adversário terrível. É verdade que o Real Madrid era campeão da Europa pela segunda vez. E vencedor da Taça Latina: acabara de bater o Benfica na final de Chamartín (1-0). Mas o Barcelona tinha mais títulos de campeão de Espanha.E no anterior Maio desmembrara o Real em Les Corts, por 6-1 para a Taça do Rei. O Benfica era campeão nacional. Tudo gente fina.
Há 17 anos que Benfica e Barcelona não se encontravam: fora em Barcelona, em 1940, vitória catalã, por 4-2. E antes disso resultados assustadores: 2-5, 1-5, 2-5, 0-5... Eu bem vos disse: assustador.
Não se esqueçam que nesse tempo em que os jogos oficiais eram escassos ou inexistentes, e resumidos a meia-dúzia de previligiados, os «amigáveis» ganhavam aura de grandes embates. Extraordinárias compitas.
Nomes? Ramallets, o grande «keeper» que viria a defrontar o Benfica na final da Taça dos Campeões; o «zurdo» Segarra, já soldado de muitas batalhas; o famoso Gensana, ainda no início da sua carreira brilhante; e ainda os grandes Basora, Villverde, Tejada e Luisito Suarez que não tardaria a rumar ao Inter.
O jogo foi quase em campo neutro, no Estádio do Restelo, cheio como um ovo.
O Benfica não se assustou. Não teve medo. Foi fiel à sua aura de grande da Europa. Não tardaria a estrear-se na Taça dos Campeões Europeus, em Sevilha. Não faltaria muito para juntar duas delas à Taça Latina nas vitrinas da Luz.
Coluna, Palmeiro, Cavém, José Águas: vocês julgam que gente desta tinha medo? Não. O medo não fazia parte do sangue que lhes corria nas veias. Barcelona? Cinco goleadas seguidas? Mais um motivo para puxar para cima as golas do orgulho e ir em frente. É em frente que fica a glória.
Arrasado o Barcelona do futebol directo
Pois é, quem diria? Nesse tempo o Barcelona era famoso pelo seu futebol directo, objectivo, de poucos passes e muitas cavalgadas. Atrás do tempo tempo vem...
Ao contrário do Benfica, um brasileiro: Otto Glória. Parece cada vez mais incontestável que foi ele que virou o rumo do Futebol português, impondo no Benfica a mais férrea profissionalização. Também ele não sabia o que era o medo.
De Coluna eram conhecidos os remates potentes e colocados desferidos de longa distância. E assim foi. Ramallets esforçou-se, mas não teve hipótese. Coluna repetiria a proeza em Berna, quatro anos mais tarde. Ramallets voltou a não ter hipóteses. Um a zero: o monstro azul-grená abanou. Talvez fosse a sua vez de sentir medo.
Tinha razões para isso. Em cima do intervalo, José Águas fugiu à defesa do Barça: dois a zero! Voltaria, também ele, a marcar e a derrotar o Barcelona, em Berna. O Benfica dominava e jogo a seu bel-prazer. Cavém marcou pouco depois do recomeço: três a zero. E Águas também: quatro zero. Um golo monumental de colectivismo e precisão técnica.
E agora Barcelona? Ainda há muito para jogar e a derrota ameaça ser abracadabrante. Afinal este 'jogo das goleadas' o Benfica também sabe jogar. Mas, se os 'encarnados' são ameaçadores também são perdulários. Encantam-se com a fluidez do seu Futebol e com os movimentos bem desenhados da sua linha de ataque. Por uma e outra e outra vez o quinto golo espreita a baliza de Estrems, que substituira Ramallets, com olhar rútilo e guloso. Por uma e outra e outra vez a fortuna abraça o guarda-redes catalão com os sues braços de mãe extremosa. Coluna chuta forte à barra. Calado imita o moçambicano: também à barra. José Águas marca um «penalty»: à barra; Calado corre à recarga: ao poste. Ah! Os «palos»! Ainda se haveriam de queixar os de Barcelona em Berna... O Benfica passa ao lado da que poderia ter sido a maior goleada da história dos jogos entre os dois clubes.
E agora? Quem tem medo de quem?
Kubala e Evaristo, estrelas grandes do Barça, ficaram em Espanha, a contas com operações. Não perderiam por esperar. A final de Berna vinha já aí."
Afonso de Melo, in O Benfica