"Reflectir sobre um Mundial de futebol em que os oitavos de final renderam cerca de 16,4 milhões de Euros à Federação Portuguesa de Futebol e uma indemnização de 4,5 milhões de Euros a Fernando Santos será reflectir não só sobre economia mas também sobre política.
Mas para levarmos a cabo este exercício teremos de ter em conta aquilo que ele poderia ter sido – o possível – e aquilo que foi na realidade – o real. “(…) o possível é quase infinito, ao passo que o real possui fronteiras rigorosamente delimitadas. O real é sempre um possível único, eleito numa série de possíveis. Um caso particular do possível. Esta a razão por que o pensamento pode abordá-lo de várias maneiras. Ingressar no possível corresponde a modificar a nossa perspectiva do real.”
Tudo começou, apesar de todas as objecções que já foram apresentadas, com a atribuição do Mundial ao Qatar. No campo do possível, seria mais bonito (talvez até politicamente mais correcto) organizar o Mundial de futebol de 2022 nos Estados Unidos porque seria logo a seguir ao Mundial organizado na Rússia – tal como desejava Blatter, presidente da FIFA na altura. No campo do real, Platini, presidente da UEFA, foi chamado ao Eliseu (estávamos em 2010) e de lá saiu já com o voto pronto para o Qatar… porque o presidente Sarkozy necessitava de vender cerca de 14,6 mil milhões de Euros em caças Mirage ao Qatar (o que veio a acontecer algum tempo depois).
A partir daqui foi tudo aquilo que se sabe e já foi denunciado. A partir daqui tudo foi uma bola de neve até se chegar ao ponto – real – do Qatar seduzir 34 parlamentares britânicos e com eles ter gasto cerca de 300 mil Euros a fim dos mesmos promoverem uma imagem positiva deste país. De tal maneira real que dentro dos muitos possíveis, um veio à luz do dia: a Vice-Presidente do Parlamento Europeu, Eva Kaili, foi detida em flagrante delito em Bruxelas e acusada de branqueamento de capitais, corrupção e participação em organização criminosa (“o Qatar está entre os países líderes na defesa dos direitos dos trabalhadores” é uma frase sua!).
É facto assente que o futebol não sai da política, nem a política sai do futebol. Tal como a economia. A economia não sai do futebol nem o futebol sai da economia. Ou o negócio… diríamos nós!
De 20 de Novembro a 18 de dezembro estivemos hipnotizados, apesar de todo o anátema deste Mundial, por aquilo a que alguns autores franceses chamam o “ópio do povo” num duplo sentido, como refere Pierre Laguillaumie (2): “por um lado, obscurantismo das faculdades críticas (evasão, fuga, êxtase); por outro lado, compensação, substituição e esquecimento das reais infelicidades”. Apesar de todos os atropelos do Qatar aos direitos humanos denunciados, o espectáculo e o consumismo levaram-nos a uma trégua tornando-nos cúmplices desses atropelos. A melhor confirmação vem precisamente de uma jogadora de futebol: “Já que, infelizmente o país organizador não promove a normalização dos direitos humanos, o que é habitual do campeonato do Mundo, estejamos cá para desfrutar de um bom espectáculo de futebol”. Afirmação de Madalena Marau, defesa do Lank Vilaverdense («O Jogo», 27.11.2022).
No jogo entre Portugal e o Uruguai o italiano Mário Ferri invadiu o campo tendo na parte de trás da ‘t-shirt’ escrita a frase “respeito pelas mulheres iranianas” e na parte da frente “salvem a Ucrânia”, ao mesmo tempo que transportava na mão uma bandeira LGBTQIA+… O marroquino Jawad El Yamiq celebrou a passagem aos oitavos de final com a bandeira da Palestina dentro de campo… Nas bancadas múltiplas manifestações estiveram presentes… Uma adepta do Irão foi expulsa do Estádio Ahmed Ben Ali por ter homenageado Mahsa Amini apresentando a imagem desta numa ‘t-shirt’…
Jogadores e adeptos do Irão permaneceram calados durante o seu hino no jogo contra a Inglaterra enquanto antes do pontapé de saída os jogadores ingleses colocaram um joelho no chão para assinalarem a importância de se respeitarem os direitos humanos… Jogadores alemães, antes de jogo com o Japão, protestaram contra a decisão da FIFA de impedir uso da braçadeira "One Love" deixando-se fotografar com a mão sobre a boca…
Como respondeu Portugal? Depois de altos dignatários terem estado presentes como forma de apoio aos nossos jogadores, só depois da eliminação da nossa selecção nacional o nosso Parlamento aprovou um projecto de resolução que propunha a condenação da realização do Mundial 2022 no Qatar… Só depois!
Como respondeu a FIFA? Alargando o Mundial de Clubes para 32 equipas e o Mundial de futebol em 2026 para 48 selecções nacionais sem ter em conta o desgaste dos jogadores ou os calendários nacionais.
Entretanto a Supertaça de Espanha vai para Riade, na Arábia Saudita, tal como a Supertaça de Itália. País em que entre 10 e 23 de novembro foram executadas 17 pessoas (das quais 4 sírias, 3 paquistanesas e 3 jordanas). País em que ao todo houve 144 execuções em 2022 de acordo com uma contagem da Agence France-Presse, mais do que o dobro de todo o ano anterior. E em Março do ano findo, num único dia, 81 pessoas acusadas de terrorismo foram executadas. Grandes competições saem dos seus próprios países para se realizarem num país que não respeita os direitos humanos… Motivos? O negócio!
Agora temos, também na Arábia Saudita, o encontro entre o Paris Saint-Germain e uma selecção do próprio país naquilo que se designa como o encontro entre Messi e Cristiano Ronaldo. É o poder do dinheiro!
Já em 1976 – ano em que Carlos Lopes venceu o Campeonato do Mundo de corta-mato e conquistou a medalha de prata nos J. O de Montreal –, Brohm (3) nos dizia que o desporto é “em todas as áreas, uma empresa florescente, um «big business» capitalista, que incentiva numerosos grupos financeiros, empresas industriais, entidades comerciais, públicas ou privadas, municípios, até países, a envolverem-se na organização de grandes eventos desportivos, torneios, competições e Jogos Olímpicos, cujas repercussões económicas são enormes.” Quase há cinquenta anos!
Talvez o título deste artigo não devesse ser o que o encima. Porque a questão é: o que fazem os dirigentes desportivos pelos direitos humanos?"