"Depois de Eusébio, tantos Eusébios se prometeram ao Benfica. Tantos foram «o novo Eusébio»... Mas o destino não se compadece com a vontade. Ninguém se compara ao incomparável.
EUSÉBIO só houve um! Ninguém tem dúvidas desta verdade, deixada aí em cima em forma de parágrafo com ponto de exclamação. Mas a verdade é que depois de Eusébio, houve um nunca mais de esperanças de Eusébio. Chegava um jogador de África, das ex-colónias, e dizia-se: «vai ser o novo Eusébio!» E não era. É impossível ser Eusébio. Só Eusébio sabe ser Eusébio!
Lembro-me de vários. Vocês também se lembrarão, certamente. Houve o Cavungi, o Mário Wilson (filho, pois claro), o Reinaldo, o Akwá, até o Mantorras.
É demasiado pesado para os ombros de um jogador quererem compará-lo ao incomparável.
Hoje, neste espaço, vou recordar dois candidatos a Eusébio. Nomes que o Futebol esqueceu, quem sabe se injustamente.
Um era João Lopes Cardoso. Mas ninguém o conhecia por João Lopes Cardoso: era o Nartanga.
Nartanga. João Lopes Cardoso: o Nartanga. Porquê Nartanga? Segundo sei, nem ele sabia. Era Nartanga e chegava.
Quando Eusébio desembarcou em Lisboa, Nartanga foi-se introduzindo lentamente na sua sombra. Quero dizer: de Eusébio todos diziam que viria a ser um novo Matateu, mas melhor ainda; de Nartanga se dizia que podia ser outro Yaúca. Não foi.
Mas depois de Eusébio já começar a ser Eusébio, Nartanga não deveria ter-lhe ficado atrás. As suas qualidades prometiam glória e sucesso e golos e mais golos. Promessas por cumprir.
Cinco meses esteve Eusébio em Lisboa sem poder estrear-se pelo Benfica. No dia em que se estreou, a 23 de Maio de 1961, frente ao Atlético, pelas Reservas, Nartanga também já lá estava. Jogava a ponta-direita, mas já tinha sido experimentado a avançado-centro. Era como se houvesse um fio transparente de destino a ligar os dois jovens que tinham vindo de África.
Três meses esteve Nartanga em Lisboa sem poder estrear-se pelo Benfica. A burocracia ia arrasando com a carreira de Eusébio; Nartanga era alto, magro, e trouxera de Bissau um ar esfomeado: foi chumbado no Centro de Medicina Desportiva.
Enquanto Eusébio se treinava, à espera que o movimento lento do seu processo encaixasse nas rodas dentadas das expectativas, Nartanga engordava. A natureza foi mais célere do que a justiça: Eusébio, ainda que já fosse Eusébio, só marcou finalmente golos pelo Benfica nessa noite de Maio em que chovia; Nartanga, nas reservas, marcava golos na Azinhaga dos Alfinetes, ao Oriental, em Alvalade, ao Sporting, na serra, ao Guarda. Muitos golos.
Havia quem escrevesse: Eusébio e Nartanga! E ambos, juntos, sorriso cúmplice de um brilho adivinhando. Havia quem fotografasse: Nartanga e Eusébio. Com legenda: «As pérolas ultramarinas do Benfica».
Depois, na fotografia da vida, Eusébio ficou sozinho. Na memória de Nartanga, apenas a maçaneta de uma porta pela qual não chegou a entrar.
Sangue de Eusébio
MAS houve outro, e dele falo hoje também, este talvez ainda mais Eusébio, porque o sangue era o mesmo. Gilberto. Irmão de Eusébio. Aquele que também ficou ligado ao Futebol. Em Portugal a Imprensa não tardou a chamar-lhe «Eusébio n.º2».
Em Moçambique, na Mafalala, jogava n'«Os Brasileiros», a mesma equipa de pé descalço de Eusébio seu irmão. Um dia Eusébio foi de férias a Moçambique. Já era Eusébio de corpo inteiro. E trouxe consigo Gilberto. Eusébio e Gilberto; Gilberto e Eusébio: as comparações rebentaram por toda a parte. Gilberto mais cerebral do que Eusébio, talhado para outras funções, mais distribuidor de jogo, mais organizador, mais lento, menos rematador, menos possante. Gilberto tinha apenas 15 anos. «Jeito ele tem, mas é cedo para se saber o que dá!», ia Eusébio acalmando os entusiasmos.
Gilberto da Silva Ferreira: em Lourenço Marques, tinha a alcunha de Juju. No dia 9 de Agosto de 1963, no Estádio da Luz, «A Bola» fotografa Eusébio a entregar a camisola do Benfica ao irmão: «Veste-a e honra-a!... Não chega ter habilidade», vai alertando Eusébio. «Ele é muito novo. E se mesmo alguns jogadores já feitos não consenguem triunfar na Metrópole, onde tudo é diferente, que fará ele, que nem jogador é ainda? Gostava imenso que ele se transformasse num grande jogador, que pudesse atingir as mesmas coisas que eu já atingi, porque é muito bom rapazinho e um bom irmão». Gilberto dizia: «Sei marcar golos, lá em Moçambique marcava muitos, mas não quero ser avançado, quero ser médio...». Gilberto da Silva Ferreira não vingou.
Era Silva Ferreira mas não era Eusébio. Não foi capaz sequer de medrar à sombra gigantesca do irmão. Porque não basta querer ser Eusébio. Não basta sequer repartir com ele o sangue e a mãe. Eusébio é Eusébio e ponto final."
Afonso de Melo, in O Benfica