"Às vezes o Futebol é também a vida. Ou a vida de outra forma. Quando o árbitro traça espuma branca no chão, eu lembro-me das fronteiras. De todas as fronteiras dos homens.
Quando se faz um riso na vida da gente, raramente somos capazes de fazer o gesto de levantar o pé e passar-lhe por cima. Muitas vezes, nem sequer pisamos o risco. Aliás, pisar o risco é uma daquelas expressões velhas e relhas que nos remetem para o sossego sério das obediências. Em português, pisar o risco não é sinal de coragem, é motivo de censura.
Gosto de ver os árbitros deste Campeonato do Mundo traçarem os riscos para lá dos quais as barreiras de jogadores não podem passar e que até a bola parece reverencialmente respeitar. O risco é a fronteira. Está lá. Não passa de uma espuma inóqua, mas é o risco, o limite. O risco não está na relva, está simplesmente na cabeça de cada um. Funciona? Funciona, sim. Há um risco dentro de cada um de nós. Vários riscos. De cada vez que as pernas ou o cérebro passam os riscos, corremos para o confessionário da igreja, para o consultório do psiquiatra, somos levados às salas dos tribunais, encerrados em penitenciárias ou simplesmente mergulhados nos sentimentos de culpa tão próprias desta sociedade construída em cima da religião, da polícia e de todas as divinas entidades que nos vigiam a toda a hora, a todo o minuto, a todo o segundo. O risco é o guarda que cada um alimenta. O risco é o esbirro que espreita em cada uma das nossas esquinas interiores. Há poetas que teimam em ser poetas e lhe chamam consciência.
O Brasil tornou-se, ao longo deste Mundial, o país dos riscos. Quem diria? Sabíamos que pelas favelas das cidades grandes se corriam riscos. Não sabíamos que para lá do risco do Equador o risco quebraria o suave encantamento de uma sociedade em que as barreiras tantas vezes se dissolvem.
Érico Veríssimo é um dos grandes da literatura portuguesa. Descreveu como ninguém as famílias dos imigrantes italianos no Brasil e as suas peculiaridades. E conta que, certo dia, o velho pai, preocupado com a tristeza do filho, o chamou e lhe disse com esse sotaque inconfundível que as novelas trouxeram para as nossas televisões: «Figlio mio. Conhece a história do piru? A genti faz um risco di giz em volta do piru e o cretino do piru crede que está preso. Senti. La vita é bela, la vita te chiama. Não faz como o piru. Salta o risco di giz, figlio. E come o piru».
A Selecção Nacional não saltou o risco de giz. Limitou-se a ficar presa como o cretino do peru. Presa ao medo, presa à ausência de talento, presa a fantasmas que continuam a assustar um povo que não encontra mais Índias onde ir ganhar-se. Portugal limita-se a ser português. Cada vez é mais preciso, pá, navegar, navegar, e a gente não navega. «Navegar é preciso; viver não é preciso». Sobretudo viver a ditadura dos riscos que qualquer um traça no caminho que devíamos percorrer. Sim, o futebol é quase sempre uma parábola da vida.
Fizeram um risco de giz em redor de Portugal. De Portugal inteiro. E Portugal não salta o risco nem come o peru."
Afonso de Melo, in O Benfica