"Confesso desde já: sou uma eterna nostálgica. Principalmente por aquilo que a minha memória não alcança, porque não viveu. Uma coisa é ter estado lá, é ter visto, é ter sentido. Outra é estar na penumbra. Tantas vezes porque a linha temporal não nos colocou a correr de forma paralela.
Não vi Chalana jogar e egoisticamente sinto isso como algo que me foi arrancado. Mas como poderia ter assistido se no seu pico eu nem sequer era um projeto de gente, nem sequer talvez um desejo, um futuro?
Resta-me apropriar-me e beber das memórias dos outros, aqueles que no estádio e na televisão tiveram o privilégio de o ver, ou que com ele jogaram, partilharam balneário e reforçam não só o talento mas o coração, de tamanho inversamente proporcional à sua finta curta, malanda, venenosa, que só consigo conhecer nos registos que almas generosas partilharam no grande reservatório internético, salvação para tantos como eu, demasiado jovens para ter assistido a um futebol que já não existe, para o bem e para o mal.
As notícias da morte de Chalana fizeram-me mergulhar nas memórias. Nos bancos de imagens encontrei a iconografia e desde já peço desculpa por a foto que acompanha esta newsletter ser dos tempos do Bordéus, onde não foi feliz, e não com o vermelho do Benfica ou da seleção nacional, cor que o iluminava. Mas tem tanto esta foto, tirada algures em 1985: os elementos capilares abundantes, na cabeça e no lábio superior, o fio ao pescoço a sofrer a inevitável inércia, deslocando-se para o lado oposto da sua finta, do seu movimento de corpo. É física e é talento, é tudo esta foto.
Nos recortes de jornais encontrei um espectro de cores, nas fotos e no seu discurso, honesto, de quem reconhece os seus dons e os seus pecados, abrindo aos jornalistas a porta de casa, cheia da parafernália cintilante dos anos 80, a contrastar por vezes com a sua alma triste, calejada pelas lesões, pelos engodos onde o meteram, um casamento que daria uma minissérie de um desses serviços de streaming. Nesses recortes vi Chalana falar de psicólogos, de saúde mental. Estávamos nos anos 80, quem tinha a humildade de reconhecer a sua necessidade? Na quarta-feira perdemos um jogador, um mágico, mas também um homem de carne e osso.
Nos vídeos encontrei o génio, as imagens são granulentas e nebulosas, mas está lá a bola que parece não querer descolar do pé, de tão bem tratada que era, a finta marota, a ginga que não era exuberante: era mortífera. A minha preferida? Uma em que Chalana domina a bola com velocidade, encara o adversário e apenas com um toque ao de leve nas orelhas da bola e um olhar para o lado faz o rival estatelar-se no chão, enganado com aquela desfaçatez.
Pergunto-me que jogador seria Chalana hoje, domado pelas academias, pela rédea curta da tática. Mas seria seguramente um dos melhores porque nele não havia só o puro talento, a extravagância, a excentricidade e egoísmo dos génios. Nesses registos em vídeo também o vi não poucas vezes a descortinar sabe-se lá como um colega em melhor posição que ele, a construir jogadas para que outro pudesse marcar. A abrir os espaços, a criar em prol da equipa. Foi um jogador que marcou um tempo, mas que não seria exclusivo desse tempo.
Mas era outra era, outro futebol. É certo que por estes dias Chalana poderia ser um jogador mais amestrado, mas quem sabe se menos sofredor com lesões. Naqueles dias o futebol era coisa amadora comparado com a ciência de hoje. Mas se hoje não haveria um Saltillo (onde Chalana nem esteve), naqueles tempos o pequeno genial muito provavelmente também não assistiu a cenas indignas como aquelas que vimos esta semana em Guimarães, porque, pasmemo-nos, há quem pense o futebol como um veículo para ir a um país estrangeiro e, ainda por cima com ajuda de uns locais, espalhar a violência e o terror, quando tudo o que interessa é aquilo que Chalana nos deu: o sonho, a magia, a arte. Esta semana, lá se nos foi mais um bocadinho da inocência."