"«Temos de proporcionar oportunidades de formação complementar para serem amanhã cidadãos do futuro que nós queremos ver no nosso país»
Bola na Rede: No Footbal Talks, referiu que os treinadores de níveis 1 e 2, que trabalham com o jovem jogador, não se devem focar em ser o próximo Mourinho ou o próximo Guardiola; acha que, para os treinadores que caiam nessa tendência, a pressão para terem resultados imediatos acaba por afetar o desenvolvimento individual de cada jogador?
Pedro Mil-Homens: Se tiverem essa pressão, claro que isso afeta o desenvolvimento natural desse jogador e essa pressão, a existir, donde é que ela vem? Pode vir, em primeiro lugar, do modelo competitivo que é oferecido a estes escalões jovens, e pode vir também de alguma pressão que os clubes exerçam. Não me parece que seja questão principal, a pressão que os clubes possam fazer; o tema principal, do meu ponto de vista, é que nós precisamos de, no processo de formação destes jovens treinadores (que têm perfis diferenciados, uns foram jogadores, outros são jovens oriundos de formação mais académica), precisamos de trabalhar com ele, no sentido de lhes mostrar que nestas idades mais jovens, a dimensão tático-estratégica do jogo não é a questão principal, pelo contrário.
São as oportunidades para jogar um jogo mais livre, mais divertido, com mais alegria, mais criatividade, se quiser até vou mais longe, um jogo um bocadinho mais selvagem. Porque foi assim, nestas condições que as nossas referências do passado, os Figos, os Rui Costas, que tantas alegrias nos deram, não começaram a jogar futebol neste modelo formatado da escolinha de futebol que nós temos hoje. Mas como o mundo não anda para trás, nós precisamos hoje, nos clubes, nas escolas de futebol, criar, recriar esse ambiente e ter uma abordagem menos virada para os assuntos tático-estratégicos, mas para isso acontecer, não precisamos só dos treinadores; precisamos dos treinadores e dos organismos que regulam o futebol, neste caso as associações regionais que eu acho que deveriam refletir num modelo competitivo que hoje nós oferecemos a esses escalões.
Eu disse ali na sessão que a federação alemã está a rever toda a oferta competitiva dos sub-11 para baixo, um modelo complemente inovador. Portanto, isto quer dizer que outros estão preocupados com esta questão, porque a questão do futebol de rua não existe em Portugal como existe em Munique. Portanto, precisamos de encontrar um conjunto de estratégias para, a médio-longo prazo, podermos ver os resultados.
Não esquecendo que precisamos também nestes escalões mais jovens que, a Federação Portuguesa de Futebol, e todos em conjunto, regulemos de outra forma a intervenção dos intermediários e dos agentes de futebol em crianças desta idade. Não é aceitável que a pressão sobre pais e crianças, jovens, aconteça em idades tão precoces. Estamos a profissionalizar cedo demais este ambiente e amanhã estes jovens, vão “fartar-se” deste contexto em que têm tantas obrigações, coisas já muito profissionalizadas e abandonam e têm outras coisas para fazer, porque o mundo hoje para oferecer a estes jovens mais coisas do que o futebol. E se nós os queremos captar para o futebol, que é um jogo maravilhoso, temos de lhes dar um jogo mais alegre, um contexto mais divertido e menos pressionante.
Bola na Rede: Já enveredou um pouco pela minha próxima pergunta; quando se discute a formação de jogadores jovens, é normal falar-se que também é essencial formar homens com valores, acha que a intervenção precoce de agentes, às vezes até em jovens com 14 anos, pode influenciar essa formação de homens com valor?
Pedro Mil-Homens: Os agentes são, entre aspas, agentes do desporto e do futebol, são uma peça, um parceiro da nossa atividade, não vamos dizer que eles não existem, eles existem e têm o seu papel. Agora, devem ter o seu papel, na minha humilde opinião, em idades e etapas mais avançadas do processo de desenvolvimento destes jovens, e não em idades tão precoces. E, para o desenvolvimento integral desses jovens, como mencionou, todos nós, clubes, temos a nossa responsabilidade, nomeadamente aqueles que tem academias onde têm jovens residentes, temos obrigação de, para além de os manter numa carreira dual – escola e futebol – temos de proporcionar oportunidades de formação complementar para serem amanhã cidadãos do futuro que nós queremos ver no nosso país.
Bola na Rede: O SL Benfica, ano após ano, costuma ser das equipas a nível europeu que gera mais dinheiro com a venda de jogadores, muitos deles formados na Academia do Seixal. Você mede o sucesso da academia consoante o valor que os jogadores lá formados são vendidos, ou consoante a qualidade do jogador, dentro e fora de campo, independentemente de ter gerado dinheiro para o clube?
Pedro Mil-Homens: Isso é uma pergunta muito interessante porque muitas vezes perguntamo-nos, nós e até em fóruns internacionais, o que é que devem ser os indicadores de produtividade, digamos, de uma academia, e não é uma resposta unânime, portanto deve ser provavelmente, penso eu, um conjunto de indicadores que se devem ponderar para termos uma resposta à sua pergunta.
Certamente a valorização dos jogadores, a promoção dos jogadores, a nossa capacidade de fazer chegar jogadores da nossa formação à nossa equipa principal será certamente um indicador. A capacidade de colocar jogadores que não chegam, porque só um número muito reduzido é que consegue chegar a esse patamar, mas a capacidade que um clube, uma academia, tem de colocar jogadores noutros patamares, noutras ligas também de bom nível, deve ser outro indicador. E naturalmente, a capacidade de gerar uma receita com a alienação de direitos desportivos de jogadores oriundos da formação é certamente um indicador importante porque na formação, todo o investimento é feito pelo clube, portanto o clube quer ver rentabilizado esse trabalho.
Evidentemente num clube da dimensão do Benfica, como de outros clubes, o desempenho desportivo é também um fator. Ter um bom desempenho desportivo, sem que isso signifique subverter um conjunto de regras e de princípios para obter esse desempenho desportivo. A participação de jogadores do Benfica nas seleções nacionais, o número de jogadores internacionais jovens, também é um indicador. Portanto, é preciso construir um conjunto de indicadores, cada um com uma ponderação, para poder ter, se esse fosse o objetivo, um ranking de produtividade de uma academia de futebol.
Bola na Rede: No ano passado, no evento Soccerex Connected, disse que gostaria que o Benfica fosse uma referência mundial na formação. Entre 2011 e 2021, o Benfica foi a equipa europeia que gerou mais dinheiro com a venda de jogadores; acha por isso que o Benfica já atingiu esse patamar de referência que desejava, ou acha que a formação do clube pode dar mais um passo em frente?
Pedro Mil-Homens: Nós, quando em 2018 procurámos definir a missão e a visão dos valores do futebol de formação, dissemos que a nossa visão, é sermos reconhecidos como uma referência mundial no futebol de formação, portanto é um objetivo a atingir. A mim, custa-me ser eu a dizer se já chegámos a esse patamar ou não. Acho que o Benfica chegou a um patamar elevado ao nível do reconhecimento do seu trabalho em termos internacionais; chegar muitas vezes é insuficiente, o que é preciso é manter durante vários anos desempenhos a um nível, às vezes não é possível manter sempre ao mesmo nível, mas acho que o Benfica tem mantido nos últimos anos, um patamar que o permite ser reconhecido como uma referência mundial no futebol de formação."