"Otto Glória gostava de discutir futebol. E escrevia sobre futebol. Chegou a ter ma coluna (na verdade o texto era a sua colunas) no Diário de Lisboa chamada precisamente 'Otto Glória diz...'.
Otaviano Martins Glória: seu Otto. Teve sempre uma palavra a dizer. Falada ou escrita. Deixou em jornais, longos textos em que explicava a sua filosofia de jogo, os seus princípios básicos de treino, as suas críticas em relação ao que considerava serem os problemas do futebol.
Afirmava Otaviano que se dedicavam em Portugal cuidados verdadeiramente abusivos à táctica futebolística. E que, em primeiro lugar, era necessário dar aos jogadores uma condição técnica aprimorada antes de entrar no campo das estratégias.
Irritava-se Otaviano com aqueles que se insurgiram contra essas assertações, taxando-as precipitadas, e consideravam absolutamente ilógicas as suas teorias.
Citava Otaviano a seu favor as opiniões de colegas seus tão ilustres como Henrique Fernandez, Otto Bumbel, Szabo e Yustrich. E ilustrava o que afirmava com um texto recolhido nas páginas de um jornal referindo-se ao avanço do futebol em Portugal como um avanço de caranguejo, ou seja, para trás.
Tudo isto se passou em Março de 1958.
No dia 1, o Benfica recolheu o Torriense e venceu de aflitos (1-0) ao mesmo tempo que via o Sporting aproximou-se do título.
Dissertou longamente Otaviano sobre o acontecimento.
Desagradável
Adjectivou Otaviano de desagradável muito do que aconteceu no jogo entre Benfica e Torriense.
Era um tempo em que os treinadores falavam livremente e não se reduziam a banalidades.
Começou por afirmar Otaviano que o adversário era aguerrido e que estava a fazer um campeonato interessante. E que o jogo tinha sido tão cinzento quanto a tarde cheia de nuvens de Lisboa.
Escreveu Otaviano tudo isto em duas colunas do extinto Diário de Lisboa.
Queixou-se com veemência Otaviano da arbitragem e considerou que perdeu a conta dos lances em que o Benfica foi claramente prejudicado. Acrescentou também Otaviano que o truncamento de um sem-número de jogadas junto à área adversária tinha impedido os encarnados de criarem mais oportunidades de golo.
Afirmou Otaviano que o quadro que dirigia não tinha, por seu lado, começado bem a partida com muitas peças a renderem muito menos do que o esperado. E que ficou definitivamente desagrado com a etapa inicial apesar do domínio territorial exercido.
Insistia Otaviano que o domínio exercido sobre o futebol português pelas teorias do 4.2.2, 4.3.3, 'ferrolhos' e 'betons', diagonais, turbilhões e outra manobras, estava a prejudicar claramente a evolução técnica dos praticantes.
Concluía Otaviano que as equipas que possuíam jogadores de grande categoria, desde que eles se encontrassem em perfeitas condições físicas, técnicas, psicológicas e morais, não precisavam de intrincados esquemas tácticos para serem sempre superiores e quaisquer outras que, mesmo possuindo estratégias revolucionárias, fossem integradas por jogadores sofríveis.
Otaviano gostava de filosofar a propósito do futebol.
Às vezes é importante escutarmos o que aqueles que ajudaram o futebol em Portugal a evoluir até àquilo que é nos dias de hoje tinham para dizer.
Otaviano foi campeão pelo Benfica três vezes e ganhou seis Taças de Portugal.
Também ganhou a Taça de Portugal pelo Belenenses e pelo Sporting.
Levou o Benfica a uma final da Taça dos Campeões Europeus.
Morreu em 1986, no início de Setembro com 69 anos.
Eu gosto de ler o que afirmava Otaviano.
E gosto de o trazer aqui a estas páginas. Porque a memória nunca prescreve."
Afonso de Melo, in O Benfica