"Ver Carlos Queiroz atirado ao ar pelos jogadores do Irão, glorificado como herói “globetrotter” de uma causa que mobiliza todo o mundo, é mais um marco no processo de afirmação dos treinadores portugueses. E consegui-lo como resgate de um regime menor no futebol, pária da ordem internacional e repressor dos direitos humanos, é ainda mais admirável, exaltando o seu inconformismo de guerreiro quixotesco.
Ao vê-lo enfrentar olhos nos olhos a hipocrisia da BBC, que elegeu por estes dias como “inimigo” catalisador nas salas de imprensa do Catar, lembrei-me da relação tempestuosa que tentou manter comigo, por causa de uma crónica de um jogo do Sporting, na qual terei apontado algum defeito ou descuido.
Já no início de carreira buscava a motivação conflituosa, “à Pinto da Costa”, como ele dizia na altura, em versão académica do contra tudo e contra todos. Há 30 anos, colou o jornal na parede do balneário e usou-o como instigação dos jogadores - numa evidente falta de noção, ou de noites bem dormidas, entre os diversos desvios de atenção que acabaram por custar um campeonato ao melhor plantel do Sporting dos últimos 40 anos.
Numa conferência de imprensa em Doha humilhou a repórter da televisão inglesa, Shaimaa Khalil, perante dezenas de câmaras móveis para iraniano ver - caprichado em “mind games”, dez anos antes de Mourinho, como frisaram velhos “compagnons de route” tão diferentes como o alemão Jurgen Klinsmann ou o colombiano Alexis Garcia: “encaixa bem na cultura do Irão” ou “a capacidade de convencer os jogadores a serem protagonistas foi a chave do triunfo sobre Gales”.
Carlos Queiroz foi um revolucionário, o primeiro professor a desbravar uma profissão exclusiva de ex-jogadores, pioneiro de uma mudança científica e estrutural que lançou as bases para tornar Portugal no pequeno país mais influente do futebol mundial. Cozeu o seu temperamento intransigente com o estudo laboratorial e o primado do treino e do espírito de equipa, num caldo de cultura de desafio destemido, sempre impulsionado por causas fracturantes, contra todos os fautores de influência negativa, fossem políticos burocratas, dirigentes incompetentes, jornalistas críticos, até, claro, adeptos fartos de polémicas estéreis, por vezes histéricas.
Um espírito inquieto, incompreendido, às vezes incompreensível, obcecado com o controlo da equipa e de tudo o que a rodeia, comandante supremo, ditador de costumes, juiz em causa própria, máquina de lavar os cérebros dos jogadores, capaz de varrer numa simples palestra as marcas de uma derrota copiosa como os 2-6 da estreia no Catar.
Ou seja: um autêntico Ayatollah do sagrado balneário, responsável até pela “play list” da banda sonora dos estágios, desde as guitarradas do fisioterapeuta Catoja à adaptação de John Lennon (“give the dream a chance”) que inspira a actual seleção iraniana, passando pelo balanço inovador do “hip hop” dos Black Eyed Peas em 2010.
Conduziu Portugal a campeão do mundo de juniores por duas vezes. Realizou trabalhos marcantes no Japão e nos Estados Unidos. Foi um humilde Sancho Pança na melhor fase de Alex Ferguson no Manchester United. Ergueu a seleção da África do Sul. Levantou e voltou a levantar a seleção do Irão, incorporando o espírito do “Team Melli” (Equipa do Povo) e tornando-se num caso raro de treinador a qualificar três países diferentes para o Mundial.
Mas quando chamado a exigências de primeira linha (Portugal duas vezes, Sporting, Real Madrid ou, recentemente, Colômbia e Egipto), com o desconforto de ter de olhar as competições e os adversários de cima para baixo, faltou-lhe a frieza do matador.
Passar da facilidade da contestação à pressão de trabalhar sem margem de erro é-lhe fatal, ao deixar-se emaranhar pela compulsão egocêntrica, quase fundamentalista, e pela vanidade do reconhecimento que o fizeram perder as estribeiras e o foco - as “porcarias” da Federação, os mexericos de Santana Lopes, os caprichos dos Galácticos de Madrid, o assédio madrugador dos médicos anti-doping, os chistes do meu amigo Jorge Baptista, a prepotência dos colombianos, enfim, invariavelmente envolvido em querelas menores para acabar derrotado pelos desafios maiores.
Não passou ao lado de uma boa carreira, porque atingiu e mantém uma dimensão mundial, mas podia ter sido o maior treinador português de sempre. E não será."