"O Zé Augusto é um bom amigo. Tenho por ele o respeito profundo que se deve não simplesmente aos mais velhos mas, sobretudo, àqueles mais velhos que fazem o favor de nos ensinar. Muitas vezes o encontro, quase sempre no Estádio da Luz, e a conversa dele faz bem.
José Augusto Pinto de Almeida foi um jogador enorme. Um dos poucos portugueses que se podem gabar de ter ganho duas Taças dos Campeões consecutivas. Mas, como futebolista, está para além dos prémios, dos troféus, dos títulos: havia o estilo e uma certa liberdade que soprava lá do lado direito.
Nos anos 60, toda a gente que escrevia nos maiores jornais desportivos da Europa inventava comparações entre os jogadores do Santos e os do Benfica. Eusébio não gostava, ia aos azeites. Quantas vezes o ouvi dizer: «Não sei porque me chamam o Pelé da Europa. Respeito muito o Pelé mas eu sou Eusébio. Por que não lhe chama Eusébio da América do Sul?» Era isto que eu queria dizer. Gabriel Hanot foi um dos nomes ímpares do jornalismo. Jogou futebol, foi seleccionador francês, foi director do L'Equipe e foi o mentor da Taça dos Campeões Europeus, ainda sem UEFA que não era precisa para nada, sobretudo quando existia coração e empreendedorismo.
Gabriel Hanot merecia só por si uma crónica: fica para outro dia.
«Sacré Benfica!!!», exclamou uma vez nas páginas do seu jornal. «Eis o que é um verdadeiro clube de Taça dos Campeões»: estava em Praga e vira os encarnados eliminar o Dukla do imenso Masopust. Foi ele que também não escapou à maldita mania das comparações: «José Augusto é o melhor extremo-direito da Europa. É o Garrincha português». De acordo: o Zé foi o melhor extremo-direito da Europa. Pelo contrário: não tinha nada de Garrincha.
Mané Garrincha era o futebol entortado, desconcertado, inadmissível. Uma vez, Nelson Rodrigues disse ele: «Isso aí não existe!»
Podia muito bem ser um fantasma: passava por entre os adversários. Atravessava-os.
José Augusto bailava sobre um traço de cal. Era a direito, súbito, intolerante. Não perdoava um defesa que chegasse um segundo atrasado: era golo.
Uma sombra como Peter Pan
Havia no seu futebol uma certeza em vez de uma incerteza. Lá está o que disse há pouco: uma liberdade. Uma liberdade que se soltava pelo lado direito e que ia ao encontro de Águas, de Eusébio, de Torres. A liberdade do vento, talvez. Não exagero se disser que o seu futebol era soprado: em rajadas. De repente estava e já não estava. Percebem? Não era um fantasma como Garrincha, eram uma sombra descosida como a de Peter Pan. A extrema-direita era sua mas não completava: sentia uma necessidade súbita de aparecer na área, a cabecear para o golo, ele era bom a cabecear para golos.
Ainda hoje olho para o Zé e percebo que ele só poderia ter sido um extremo. Dir-me-ão que também foi avançado-centro. Muito bem. Eu sei. Mas também sou eu que escrevo estas linhas desta sua página e arrogo-me ao direito de certas teimosias próprias de quem está à frente de um teclado. É como extremo-direito que o vejo, que o recordo. Às vezes leve como uma pena empurrada pela brisa; outras vezes correndo como um comboio sobre a linha branca de cal como se fossem carris.
Que me desculpe Hanot, lá na sua merecida eternidade, mas José Augusto não era Garrincha, nunca foi Garrincha. Garrincha, o rapazinho de Pau Grande que tinha nome de passarinho, era um apaixonado do drible: driblava por prazer, se fosse preciso saía de um drible e voltava atrás para fintar outra vez o infeliz. José Augusto usava o drible como um propósito, como uma necessidade: não era um divertimento, era uma construção, uma inevitabilidade. Depois vinha a consequência: para Garrincha, a consequência era mais um drible, se possível mais outro e outro; para José Augusto a consequência era o golo.
Gosto de escrever sobre amigos e sobre aqueles que foram a excelência do futebol. Por isso agradeço ao Zé: pelas duas coisas. Um dia gostaria de escrever um livro sobre ele. Embora saiba que jamais as curvas da prosa possam sequer atingir o brilho de tal liberdade que soprava do lado direito..."
Afonso de Melo, in O Benfica