"O futebol português parece um pouco mudado, porém, por enquanto, os três grandes estão a ganhar. Será que a acalmia irá resistir quando a ansiedade naturalmente aumentar?
O futeboliquistão não adormece embriagado e dorido e acorda todo preparado para a vida logo pela fresquinha, de camisa engomada e por dentro das calças. Não há remédio caseiro, com mais ou menos gemas de ovos, engolido de nariz apertado entre indicador e polegar e careta escondida, que lhe devolva a dignidade de um dia para o outro. Daí ter dúvidas de súbitas alterações de que um futebol que nunca gostou de si próprio ter subitamente aprendido a amar-se. Bom seria, não duvidem.
É ainda tão cedo que não é por não cheirar a napalm que, quando começar a doer e os objetivos parecerem escorregar por entre os dedos, não se espere voltar a sentir a pressão, o ambiente mais carregado e barbaridades ditas e repetidas em momento de descontrolo, tão típico da humanidade e mais ainda da que acha que gosta do jogo. É que nem o génio com maior quociente de inteligência em todo o planeta conseguiu descobrir como manter a racionalidade na reação ao pontapé para a atmosfera de debaixo um Arco do Triunfo ou ao frango monumental, replicado desde o seu epicentro até estilhaçar todos os corações na periferia.
Não é só. É ainda penálti não marcado, o golo anulado, a ilegalidade que não se viu, a raça ou a falta dela, a atitude e a sua ausência, as substituições que não fizeram sentido para meter os mesmos, a escorregadela na hora de atirar, o passe que ficou por fazer e ensombrou o drible, o mau atraso, a perda em zona de risco mesmo que este fosse calculado, o amarelo que era vermelho e o vermelho alaranjado que bem que podia ter sido amarelo. Não podia?
Inúmeras as discussões de proporções dantescas. Da TV para as bancadas, das bancadas para as esperas. Rastilhos a cada canto, armadilhas preparadas, e o bom senso a ir pelo cano.
O ponto de partida não foi o mesmo de antes. No Dragão, as várias roturas fizeram circular o ar ao mesmo tempo que esvaziaram um pouco as expetativas, nunca abaixo, no entanto, do compromisso de sempre, fasquia inegociável, que dá sempre uma referência de estabilidade no meio de mares revoltos. A Supertaça alimentou as almas para o clássico a seguir devolvê-las um pouco à realidade, embora todos saibamos que irão estar lá até ao fim. Ou perto deste. Ainda lhes dará mais motivação a ideia de que podem provar que se pode ganhar de outra forma, integrando uma visão mais global do mundo, uma maior e mais saudável proximidade entre todos os agentes e, mais importante ainda, entre os seus: atletas, dirigentes e adeptos. É difícil que não resulte, pelo menos a longo prazo, porém, se isso acontecer, de certeza de que todos saberão que não é tal abertura que lhes desfaz as asas.
A estabilidade no FC Porto encontra paralelo e a um nível ainda superior em Alvalade. As dolorosas sensações trazidas inevitavelmente de Aveiro diluíram-se na solidez de um processo que não abala com a mudança de intérpretes, tal como muito provavelmente as escorregadelas, literais e não literais, de Eindhoven serão digeridas, tranquilamente, de forma adulta, como se de um acidente de percurso se tratasse. Não será apenas isso, tal o incómodo causado pela pressão com referências individuais (como a Atalanta fez ao Sporting há não muito tempo) que dificultou e muito as dinâmicas da equipa na transferência da defesa para o ataque e nas ligações com os homens da frente, mas há uma confiança fortíssima nas ideias do técnico, que as transmite depois para quem as queira ouvir nas salas de Imprensa. A abertura sublinha também essa ideia de que comunicar bem e, sobretudo, de forma acertada para um público cada vez mais culto, dada a imensidão da informação ao seu dispor, só engrandece a liderança, em vez de reduzi-la, e tornar-se inimiga de si própria, fornecendo armas aos adversários. O mesmo se passa com os jogadores, hoje com bem maior liberdade para falar do que no passado.
Se houve continuidade a vários níveis, desde a estrutura do futebol aos jogadores nucleares, nos leões, o Benfica assentou sobretudo numa ideia de paz podre ou de relação má resolvida entre o treinador e adeptos, que não funcionou. A gestão de expetativas, também por ausência de uma liderança forte ao mais alto nível, nunca foi feita da melhor forma, tendo em conta um modelo inegociável e a política desportiva, e Schmidt não soube cativar apoios a partir de certa altura. Hoje, os resultados e sobretudo as exibições acalmam as hostes e a fezada de Rui Costa parece ter tido resultado. A razão passa sobretudo por Bruno Lage, que não se fechou no seu modelo e procurou soluções para o que tinha em mãos.
Na Luz, o clube com maior número de adeptos no país e que, por isso, ainda mais se pode alimentar de heróis e das suas façanhas, as janelas estão fechadas e trancadas e o ar não corre. Não há tranquilidade no discurso, temem-se as assembleias e os votos negativos, e as aparições em público são controladas o mais possível. Os protagonistas são ocos, pouco deles se conhece para além da bidimensionalidade que apresentam em campo. O Benfica acha que controlando toda a informação está mais perto de ganhar, o que está longe de ser verdade.
Bruno Lage não vai comunicar melhor do que Schmidt a não ser na imagem de paixão. Isso garantir-lhe-á uns pontos-extra, apenas isso, mais os que angariou com a noite europeia que devolveu à Luz e que vai permanecer na memória das bancadas por algum tempo. Falta ver o técnico à luz das derrotas. Evoluiu no tempo que passou fora da Luz?
Hoje, o futebol português vive tempos de acalmia. Apesar dos pontos em atraso, há esperança cada vez mais viva nas águias. A de um novo milagre de alguém que já foi milagreiro. Os leões apresentam-se dominadores. E, no que diz respeito aos dragões, subsiste a certeza de que serão candidatos como sempre. Enquanto os três ganharem, o ambiente assim continuará, mas todos sabemos não ficará assim para sempre. As armadilhas estão espalhadas. O teste será duro, mais uma vez, ao novo paradigma do futebol português."