"Explicar um jogo de futebol em poucas linhas de texto e com recurso aos vídeos não é fácil; em Portugal ainda menos. A força da nossa cultura futebolística faz com que na maior parte do tempo nos esqueçamos do que se passou no jogo, e não conseguimos ir a fundo na análise que se faz quando a “nossa” equipa vence.
Há, também, outro fenómeno de massas que tende a explicar tudo o que se passou no jogo do ponto de vista táctico, como se tudo no jogo fosse trabalhado pelos treinadores, como se tudo no jogo se pudesse reproduzir num treino. A evolução das formas da análise, e a forma fácil como a informação chega a todos, faz com que a esmagadora maioria dos analistas (dos bons analistas) do país tente esmifrar tanto os jogos naquilo que são os comportamentos tácticos de cada equipa, os comportamentos individuais e colectivos, que se esquece que em muitos dos casos o jogo que os treinadores promovem, e as acções individuais de cada jogador, não podem ser explicadas com base na táctica, com base na estratégia.
Os treinadores não podem ser endeusados de tal forma que tudo seja mérito deles e tudo seja demérito do treinador adversário. Há alturas, como esta, em que faz falta lembrar que quem joga são os jogadores, que os jogadores são humanos, e que os humanos agem e reagem consoante as incidências do jogo.
Vem isto ao caso da vitória do Benfica em Braga, num jogo em que Bruno Lage passou de incompetente a deus em 25 minutos e Abel Ferreira fez o caminho oposto, do paraíso ao inferno, no mesmo período de tempo.
A primeira parte foi paupérrima, do ponto de vista táctico, pela estratégia e pelos modelos de jogo definidos por cada treinador. E cada comportamento colectivo pode ser explicado de forma simples: o Benfica incapaz de ter na saída de bola soluções para colocar em passe curto os seus melhores jogadores em condições interessantes para criar; o Braga, por não ter arriscado na saída de bola, incapaz de expor a pressão do Benfica, sobretudo do lado de Rafa e Grimaldo.
Não é de hoje que se percebe, no Benfica, essa incapacidade que acaba por ser uma lacuna importante no seu modelo de jogo, por na maior parte dos jogos enfrentar equipas com menor qualidade individual. A forma de chegar ao último terço, os jogadores que recebem a bola nesse momento, em que zona recebem, e em que condições recebem - é este tipo de detalhe que fará a diferença no número de situações que o Benfica vai ter para criar situações de finalização ou não.
E, como se notou na primeira parte, e mesmo na segunda, a incapacidade do Benfica nesse momento é tremenda. Sem Gabriel, é Ferro que faz de quarterback, lançando as bolas longas, em largura, para os movimentos dos avançados, dos médios ala, ou dos laterais. E como esse tipo de passe é de mais difícil execução, de mais difícil recepção, e a zona para onde se dirige é pouco interessante (corredor lateral), torna-se simples anular as vantagens do mesmo antecipando e tentando dificultar ainda mais a tarefa de quem recebe, pressionando.
Do Braga, que tem um modelo de jogo interessante, sobretudo na forma como coloca os seus jogadores em campo, faltou coragem para ter a bola. Não só na segunda parte, como disse o seu treinador, mas mesmo na primeira, porque não tentou de forma efectiva expor a pouca competência do Benfica no momento de pressão, e explorar o espaço enorme que fica entre a linha defensiva e a linha média encarnada. A opção foi por jogar longo desde Tiago Sá, e começar a construir através da segunda bola. É certo que, nesse momento, a equipa foi muito agressiva e conseguiu ficar com várias segundas bolas; não menos certo é que os momentos para pressionar alto estavam bem identificados e conseguiram no meio-campo ofensivo condicionar os jogadores do Benfica para cometerem erros em posse, e para decidirem mal para onde deveria ter seguido o lance.
Porém, o resultado disso, com bola, nas situações em transição que conseguiu criar, foram muito poucos. A equipa nunca soube aproveitar a vantagem espacial que tinha, optando invariavelmente por fazer a bola entrar no corredor lateral para entrar na área em cruzamento, ou terminando os lances com remates de fora da área.
Do ponto de vista táctico, o jogo foi isto. E se houve superioridade de algum treinador, durante o jogo, Abel saiu claramente vencedor. Afinal, foi por força da sua estratégia, enquanto o efeito da estratégia durou, que Pablo Santos se conseguiu evidenciar. Dos erros cometidos em posse pelos jogadores do Benfica quando condicionados pela pressão do Braga, sobraram muitos lances em que se conseguiu impor nos duelos, e recuperar algumas bolas. Também há, nos lances ganhos pelo defesa brasileiro, algum demérito na forma como o Benfica tenta construir, facilitando-lhe o trabalho de recuperação; mas, de forma geral, foi sempre um jogador muito concentrado, esteve sempre nas zonas certas onde a bola iria cair, e conseguiu ganhar os lances dando à equipa a segurança necessária no momento defensivo, para se conseguir soltar do ponto de vista ofensivo.
Foi em transição que o Braga se conseguiu aproximar da baliza encarnada, ainda que nem sempre com qualidade nas ações e nas decisões dos seus jogadores. É, também, em transição, que Bruno Lage procura do ponto de vista estratégico dar espaço para que Rafa Santos possa aparecer em vantagem espacial para colocar a capacidade que tem para acelerar e desequilibrar o adversário nesse momento.
Rafa fica um pouco mais livre de tarefas defensivas, e apesar do Braga não ter conseguido explorar esse pormenor da equipa do Benfica, Rafa não conseguiu aparecer no jogo nas condições que o seu treinador prepara para ele. Não teve situações em que se pudesse evidenciar na condução dos contra-ataques, e nas poucas vezes em que tocou na bola definiu mal os lances. A troca entre extremos e médios ala do modelo de jogo de Bruno Lage não funcionou, e foram também poucas as situações em que Pizzi e João Félix receberam entre linhas. Curiosamente, os melhores lances do jogo do Benfica deram-se sempre que um dos dois recebeu a bola com tempo e espaço nessa situação.
O Braga foi muito capaz na reacção à perda, mas incapaz em transição ofensiva, daí o destaque ter ido para Pablo; o Benfica foi incapaz na construção e por consequência na criação, e também não conseguiu libertar Rafa que esteve na maior parte do tempo escondido do jogo.
Mas, como as incidências do jogo têm sempre uma palavra a dizer, o golo do Braga vem desfazer a tese de que a equipa da Abel foi incompetente no aproveitamento das situações de transição ofensiva, e o golo do Rafa vem, no mesmo sentido, desmontar a hipótese de o extremo ter sido um elemento de pouca produção no jogo do Benfica. Na realidade os dois golos são perfeitos para explicar às pessoas que o jogo está longe de ser predominantemente táctico, e que a influência dos treinadores, por mais que se queira imputar mérito, é demasiadas vezes reduzida.
O golo do Braga, do qual não temos acesso ao início do lance, começa numa perda de bola de Seferovic que fica no chão, e naquele momento o Benfica tem 8 jogadores atrás da linha da bola. Não apenas atrás, mas concentrados para que possam rapidamente recuperar posições e colocar ao contra ataque do Braga dificuldade acrescida pelo número de jogadores a participar no momento defensivo. Porém, João Félix e Florentino são os únicos que têm a percepção que aquele é um momento para serem agressivos e tentarem recuperar a bola, ficando Pizzi, Grimaldo, e Samaris a recuperar com demasiada lentidão. De certeza que não é dessa forma que Bruno Lage treina para a equipa reagir no momento em que perde a bola, mas por alguma razão, os jogadores não fizeram como no treino. Depois, Florentino persegue Fransérgio que, não sendo o jogador com mais critério do Braga, conseguiu definir o contra ataque com qualidade por não ter fugido do corredor central. Mas, apesar da igualdade numérica, da condução e decisão de Fransérgio, não poderia o Florentino ter feito falta? Não poderia o Ferro ter fechado mais por dentro? Não poderia o Rúben Dias ter sido mais cauteloso na abordagem ao lance?
Bruno Lage poderá trabalhar o erro de Ferro, por ser posicional, mas poderá mesmo trabalhar os erros de Rúben Dias, Florentino, Samaris, Pizzi e Grimaldo? O problema é que, sendo os erros de perceção, nesta fase da carreira dos jogadores, onde os treinos são muito virados para o rendimento, há uma dificuldade acrescida nisso: pelas vivências que os jogadores já têm, e pelo tipo de treino que se faz.
Como é que Bruno Lage trabalha Rúben Dias para que ele perceba em que lances deve ser impetuoso ou não? Sendo que as situações de jogo são todas diferentes, como é que se trabalha essa percepção? E tendo em conta que o estado anímico dos jogadores é diferente, consoante o jogo, o resultado, os momentos de maior ou menor confiança, como é que se replica isso no treino? Como é que Bruno Lage trabalha Florentino para perceber que naquele lance deve fazer falta? O mesmo Florentino que uns minutos depois vê amarelo por parar um lance de contra ataque onde o jogador que conduzia a bola ia pelo corredor lateral, sem vantagem nenhuma, sem colegas por perto para servir. Como é que se replica em treino esta percepção do perigo da situação, e o estado anímico que o jogador está antes, durante, e depois de um golo marcado ou sofrido, ou depois do jogador perceber que cometeu um erro que comprometeu a equipa?
É este treinador que não conseguiu treinar para a equipa aparecer na primeira parte que nos 25 minutos da segunda consegue arrebatar o jogo, com o que fez ao intervalo, virando o jogo para 1-3. Nessa fase, tinha mais ou menos o mesmo número de remates do que no mesmo período da primeira parte, e tem o mérito de ter conseguido impedir que o Braga chegasse menos. Mas, qual foi o seu papel na forma como a equipa conquistou os dois pontapés de penálti? Qual foi o seu mérito no golo de Rúben Dias, quando até aí não tinha criado perigo nas bolas paradas?
Não terá sido a descrença dos jogadores do Braga, causada pelos golos sofridos, e pela forma como foram obtidos esses golos? Não terá isso mudado completamente o estado de espírito dos jogadores do Braga? A confiança com que estavam no jogo não terá passado a insatisfação pelas incidências do jogo naquele momento? Não terá a perda de foco a ver com a ira dos jogadores, e daí os comportamentos menos agressivos com e sem bola depois dos dois primeiros golos do Benfica? Como é que se simula isto em treino? Qual é o demérito de Abel Ferreira e o mérito de Bruno Lage nisto? O que é que isto tem de táctico?
Por fim, o golo do Rafa. Que se tinha mantido em campo, apesar de ter estado escondido durante quase todo o jogo, e da opção ter recaído por Pizzi, que estava a fazer um bom jogo. Sendo que Pizzi é um jogador que define melhor os lances, com e sem espaço, e com a confiança com que estava no jogo (pelos golos marcados, e porque as coisas lhe estavam a sair bem tecnicamente e ao nível da decisão), é questionável a opção por manter Rafa em campo. No entanto, no mesmo lance de contra-ataque, Rafa não só define bem, algo que não tinha conseguido até aí, tendo isolado Seferovic, como depois faz um grande golo. Ou seja, o mesmo jogador a quem as coisas não estavam a sair tão bem, e que estava menos confiante do que Pizzi, consegue marcar o golo do jogo, pelo maior conforto no resultado e pela forma pouco preocupada com que os jogadores do Braga defendiam.
Pablo Santos, que esteve sempre muito focado no jogo, é o rosto da forma como os jogadores baixaram os braços e desistiram do jogo. De certeza que, caso o Braga ainda estivesse no jogo, ele não teria tão facilmente dado as suas costas para Seferovic entrar, assim como não teria desistido do lance tão cedo, tendo em conta a forma lenta como recuperou. E, olhando para a forma displicente como perde a bola segundos depois, para Rafa, e a forma como em desespero se desequilibra quando o tenta travar, percebe-se que não era o mesmo jogador do início do jogo. Ora, como é que se treina isto?
A singularidade de cada jogo e de cada situação é tanta que é impossível que Bruno Lage e que Abel Ferreira consigam simular no treino este tipo de situações que se reproduzem no jogo. E, por isso, porque muitas vezes os jogos se resolvem pelas incidências do mesmo, pela reacção dos jogadores a cada uma delas, pelo seu estado anímico, pela maior ou menor inspiração individual, é preciso ter muito cuidado quando se entrega o mérito das vitórias e o demérito das derrotas aos treinadores."