Últimas indefectivações

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Se um cão nos ladra na rua...

"É sempre um dilema com o qual, de vez em quando, nos temos que entender.
Que fazer quando um cão nos ladra na rua?
Dar-lhe pontapés na boca parece excesso injustificado de violência e pode valer chatices com a Sociedade Protectora dos Animais. Ladrar-lhe de volta é, no mínimo, imbecil para os padrões ocidentais.
Um altivo desprezo parece ser a opção genericamente mais bem aceite.
Este campeonato pode ir ainda no seu 1.º terço mas já nos deu a conhecer várias espécies de canídeos, de ladrares diversos, é bem certo, uns de latido mais fininho, outros de rosnar mais grosso, mas todos caninamente fiéis ao dono, abanando alegremente as caudas de cada vez que ele os resolve presentear com o recitar manhoso de uma poesia maltratada.
Uns ladram por escrito, atropelando a ortografia e a sintaxe em jornais outrora sérios, cujas páginas nunca se prestariam a tais porcarias.
Outros preferem ladrar nas pantalhas, pois é irresistível a sua tentação para a exibição do ridículo e do grotesco.
E depois há um mais jovem, cão-d'água-inglês, segundo creio, ainda a cumprir o tirocínio da sua árdua tarefa de ser cão.
Ladra sem cessar, já ninguém percebe porquê e contra quem.
E agora que se pôs em bicos-de-pés, vê-se a braços com o dilema habitual dos cães que correm à desfilada pela rua, atrás dos pneus dos automóveis: se os apanham que fazem com eles?
Já há muitos anos que o pessoal diz com a razão que normalmente assiste ao povo: não é fácil a vida de cão."

Afonso de Melo, in O Benfica

Liga Europa?

"Na temporada passada, um grande Benfica venceu categoricamente a Liga nacional, pese a surpreendente réplica do Sporting de Braga. No último terço da competição, Jorge Jesus foi inequívoco, concedendo prioridade à principal prova doméstica em detrimento da Liga Europa. A opção revelou-se ajustada, garantido que foi, ao cabo de quatro anos, o título de campeão.
Ainda assim, sobretudo depois da fulgurante exibição em Marselha, ficou um certo sabor a frustração com o desaire frente ao Liverpool, no terreno adversário, na primeira edição da Liga Europa. A forma como a equipa rubra se batia, na última época, até legitimava que a ambição fosse quase ilimitada. Ainda assim, nada ou quase nada a objectar, o Benfica até fez uma boa campanha europeia.
E este ano? Numa situação difícil no Campeonato Nacional, ainda que reversível, não será que a Liga Europa deve constituir o objectivo prioritário? A questão, no mínimo, terá que ficar em aberto. O comportamento do conjunto nos próximos embates nacionais, também o do principal opositor, como que ditarão das reais possibilidades do Benfica no atinente à revalidação do título.
Na pior das hipóteses, a Liga Europa deve constituir-se como a aspiração primacial. E tem ou não tem o Benfica, em condições normais, equipa para se bater, sem quaisquer complexos de inferioridade, com todas as equipas que se encontram na competição? O trajecto, até agora, foi acidentado? Importa revertê-lo. Importa acreditar que o naipe de jogadores, a grandeza do Clube, o entusiasmo dos adeptos, tudo reunido, justificam condições para um ano europeu pautado pelo sucesso."

João Malheiro, in O Benfica

Picareta falante

"From: Domingos Amaral To: André Villas-Boas

Caro André Villas-Boas

Algures na década de 90, Vasco Pulido Valente batizou genialmente António Guterres como “picareta falante”. Quando penso em ti, é disso que me lembro. Calado tantos anos à sombra de um gigante, chegaste a Portugal com uma necessidade infinita de afirmação e uma vontade irreprimível de palrar. Com a excitação juvenil de quem abandonou recentemente uma estranha prisão, a tua língua soltou-se.

Em pouco mais de um ano, ouvi-te arengar sobre tudo e mais alguma coisa. Discursas sobre o Benfica, muito, mas também sobre o Sporting, sempre em picanço; teorizas as falhas da Liga Europa, explicas a teoria do caos no futebol, gabas as metodologias dos treinos, defendes a primazia do coletivo sobre o individual, classificas os clubes que vêm da Champion como “frustrados”, reforças os grandes méritos de Jesus (dias depois de o ter humilhado), relembras os castigos da época passada, e opinas sobre arbitragens, Vítor Pereira, Benquerença, Jorge Silva ou Elmano Santos. Munido de mil e uma ideias, raciocínios e pontos de vista, peroras aos microfones, lançando bicadas à direita e à esquerda, como a picareta falante.

A princípio, isto irritava-me. Depois, passou a cansar-me, e só me apetecia perguntar, como o rei Juan Carlos fez certo dia a Hugo Chavez: “Por que no te calas?”. Mas, agora já te acho graça. Na verdade, perante a penúria que tem sido este campeonato, se não fosses tu e as tuas inventivas teses, esta época não tinha ponta por onde se lhe pegasse. Bem hajas, por entreter o povo com a tua retórica malabarista."

Domingos Amaral, in Record