"É sempre um dilema com o qual, de vez em quando, nos temos que entender.
Que fazer quando um cão nos ladra na rua?
Dar-lhe pontapés na boca parece excesso injustificado de violência e pode valer chatices com a Sociedade Protectora dos Animais. Ladrar-lhe de volta é, no mínimo, imbecil para os padrões ocidentais.
Um altivo desprezo parece ser a opção genericamente mais bem aceite.
Este campeonato pode ir ainda no seu 1.º terço mas já nos deu a conhecer várias espécies de canídeos, de ladrares diversos, é bem certo, uns de latido mais fininho, outros de rosnar mais grosso, mas todos caninamente fiéis ao dono, abanando alegremente as caudas de cada vez que ele os resolve presentear com o recitar manhoso de uma poesia maltratada.
Uns ladram por escrito, atropelando a ortografia e a sintaxe em jornais outrora sérios, cujas páginas nunca se prestariam a tais porcarias.
Outros preferem ladrar nas pantalhas, pois é irresistível a sua tentação para a exibição do ridículo e do grotesco.
E depois há um mais jovem, cão-d'água-inglês, segundo creio, ainda a cumprir o tirocínio da sua árdua tarefa de ser cão.
Ladra sem cessar, já ninguém percebe porquê e contra quem.
E agora que se pôs em bicos-de-pés, vê-se a braços com o dilema habitual dos cães que correm à desfilada pela rua, atrás dos pneus dos automóveis: se os apanham que fazem com eles?
Já há muitos anos que o pessoal diz com a razão que normalmente assiste ao povo: não é fácil a vida de cão."
Afonso de Melo, in O Benfica