"As redes sociais existem para serem usadas e não para serem abusadas. A ausência de compromisso com qualquer regulação é causa de preocupação.
O pai de Carrillo respondeu ao presidente do Sporting, chamando-lhe «mentiroso barrigudo», enquanto a esposa de Pinto da Costa respondeu a Vítor Baía, questionando o gosto da namorada para saias curtas, e o presidente dos leões registou, em seu nome, um texto de no sense a imitar os Monty Phython, onde fala de jornalistas incontinentes de tanta excitação por verem um carro bloqueado na garagem.
Eis, senhoras e senhores, a expressão do puro deleite das redes sociais que se tornaram, em pouco tempo, num fenómeno desregrado e descontrolado, onde tudo se mistura, numa caldeirada de loucuras, que pode incluir a injúria gratuita, a piada de mau gosto, a ofensa sem lei, a opinião irresponsável, a ordinarice avulsa, o desafio dos cobardes, a provocação dos incógnitos, o deslumbramento dos tímidos, a oração dos fanáticos, o destrambelho dos vencidos da vida, a evidência dos medíocres ou a vaidade suburbana dos indígentes.
E isso torna impraticável e indesejável o uso das redes sociais?
A resposta é um veemente não. Porque também nos oferece a evidência de ideias inovadoras, de textos de enorme criatividade, da revelação de talentos escondidos, de magníficas manifestações estéticas, de informações úteis e estimáveis, de opiniões lúcidas, de expressões literárias notáveis, de humores imperdíveis.
Portanto, as redes sociais, em si mesmas, não são boas nem são más. Existem para serem usadas e não para serem abusadas, mas o seu compromisso com qualquer regulação é nulo e, por isso, levanta razões de dúvida, inquietação, discussão.
Na última Quinta da Bola tivemos um momento especial em que o José Manuel Delgado leu um surpreendente texto de Duarte Gomes, reconhecido árbitro internacional português e que recentemente deixou a arbitragem. Um texto publicado nas redes sociais, com uma estrutura poética interessante, onde o árbitro desafiava ao exercício da troca de lugares, levando o leitor (espectador) a sentir-se árbitro e ele próprio a fazer o papel de adepto furioso.
O texto era manifestamente significativo e sintomático de uma certa forma de se falar sobre futebol, sem recorrer aos instintos mais básicos e às tentações mais grotescas que, em muitos casos, invadem opiniões e comentários sobre futebol nas redes sociais.
Não deixava de ter uma marca de personalidade, mas continha, pelo conteúdo e pela forma, uma expressão de valor, de dignidade e, acima de tudo, de inteligência.
E este o ponto essencial a que quero chegar. Não aceito, mas posso compreender a vulgaridade intelectual de um qualquer anónimo que se satisfaz com a maledicência, a boçalidade do arrazoado, a manifestação pública de uma mente desoladoramente desértica. Não aceito nem compreendo que o exercício de uma função de responsabilidade, seja no futebol, seja na vida social, mesmo quando travestida de opiniões supostamente individuais, seja compatível com a vulgaridade e, muito menos, com a manifestação gratuita da ofensa.
Não posso, nem quero aceitar que o cidadão que exerce uma missão de responsabilidade pública não tenha deveres cívicos mínimos de respeito pelos outros, pela entidade que representa e, até, por si próprio. E que não compreenda, no caso concreto do futebol, que a sua actividade deva estar regulada por um compromisso moral e cívico, capaz de contribuir para o crescimento e credibilidade do espectáculo, da indústria, do negócio.
Não entender isso é não perceber o essencial. Não perceber o essencial é a confissão mais comprometedora de que não se está preparado, nem qualificado, para o cargo que se desempenha.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola