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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Mais cultura para 2018

"Estes são os meus votos para o desporto português, em 2018: mais cultura, repito: mais cultura e que esta cultura seja prática e teoria, seja vida e não só retórica, seja profecia e não só memória. Começo com a conhecida definição de cultura de Malinowski (Une théorie scientifique de la culture, Maspero, 1968) : “Trata-se evidentemente de uma totalidade onde entram os utensílios e os bens de consumo, as normas orgânicas que regulam os diversos agrupamentos sociais, as ideias e as artes, as crenças e os costumes. Observemos uma cultura muito simples e primitiva ou, pelo contrário, uma cultura complexa, muito evoluída: estamos sempre perante um vasto aparelho, em parte material, em parte humano e ainda, em parte, espiritual, que permite ao homem enfrentar os problemas concretos e precisos que lhe são colocados”.
A cultura define-se, em primeiro lugar, como uma totalidade, que é o conjunto do que resulta do trabalho e da criatividade do ser humano, em contraste com o que é natural, com o que o ser humano não fez. Costuma distinguir-se a cultura popular da cultura erudita ou alta cultura, como o faziam os humanistas, que chamavam “bárbaros” aos que não ostentassem uma superior cultura literária, próxima dos nomes maiores da Antiguidade Clássica. No entanto, para mim, não há ninguém inculto. Como Ralph Linton o acentuava, “todas as sociedades têm uma cultura, por mais simples que pareça e todos os seres humanos são cultos, no sentido de que são sempre participantes de uma qualquer cultura” (Le fondement culturelle de la personnalité, Dunod, p. 3). De quanto precede se conclui que não há “homens incultos” e que, pela linguagem, a cultura se conhece, se compreende e se transforma. Desde os mais notados humanismos da Renascença, a cultura se estuda como criação e tradição, como imitação e criatividade. Afinal, cultos são os que não se deixam reduzir a um só arquétipo e procuram, procuram sempre… até, como actualmente, outras formas de dizer Deus!
A cultura resume, portanto, a nossa mundividência, os nossos métodos, as nossas aspirações. Nenhum comportamento nosso (não me refiro a casos excepcionais) é vazio de sentido. E a nossa linguagem assim o revela. Mas, como acima o referi, a cultura é uma totalidade, onde não há prática sem teoria, nem teoria sem prática. Cultos não são aqueles que, na sua “torre de marfim”, adormecem sobre pesados in-fólios e o seu mundo é o mundo literário da sua biblioteca. A cultura desportiva supõe a prática, a vivência de um “agente do desporto” (atleta, treinador, dirigente, médico, fisioterapeuta, etc.) e a teorização do significado e do sentido do desporto, na lógica do desenvolvimento político, social, humano. O desporto, ao libertar-se do cartesianismo e do positivismo, ao fazer trabalho interdisciplinar com as ciências da educação e o paradigma biomédico, tem de afirmar, antes do mais, que tem um estatuto epistemológico inconfundível, intransferível, por outras palavras: que é um texto onde pode ler-se a conduta humana, a dialética social, no movimento intencional e em equipa da transcendência.
Lembrando o conceito de “inscrição”, em Paul Ricoeur, tudo o que é prática desportiva é texto que permite interpretações e leituras várias, que permite o estudo e a análise do contexto e, usando as palavras de Habermas, do “agir comunicacional”. E é neste “agir comunicacional” que a competição desportiva ganha sentido, se revela cultura. Em Habermas, ser racional implica argumentação, discussão, debate. Ser desportista implica a discussão e argumentação e debate, típicos da competição desportiva, emancipada e fraterna. A promoção e a realização do desporto devem satisfazer, portanto, o que emerge de solidário, no diálogo e no consenso da competição desportiva. Ora, diálogo e consenso, em texto, contexto e sistema desportivo, situa o desporto no âmbito das ciências hermenêutico-humanas e é agente e fator de cultura.
“A cultura não é mais do que um conjunto de textos”. É o Clifford Geertz quem no diz, na sua La Interpretacion de las culturas (editora Gedisa, Barcelona, 1992). E o que é a cultura desportiva senão um conjunto de textos? E textos não tanto do Homem, ao jeito do geral, do universal, do global do discurso universitário, mas também de homens que sofrem e cantam e gritam e choram, na prática desportiva. E, assim, porque intensamente sentem o que fazem, em qualquer futebolista, ou andebolista, ou basquetebolista, ou praticante de natação e ginástica e atletismo, etc., etc., um pequeno facto leva-nos sempre à interpretação de grandes questões.
E, se o treinador não tiver em conta estas grandes questões, que formam a base da conduta dos atletas, não pode entendê-los. Há treinadores que se encontram tão próximos dos jogadores que podem, diariamente, cumprimenta-los e tão longe que não conseguem compreendê-los. A cultura, para estes treinadores (e dirigentes, poderia acrescentar) não lhes dá acesso às crenças, aos sentimentos dos seus jogadores. Donde o facto, mais frequente do que se pensa, de o seu discurso não chegar aos jogadores, como princípios fundantes, mas como palavras, palavras, palavras, com muito plebeísmo à mistura.
A “linguagem do futebol” (um exemplo) é, demasiadas vezes, isto mesmo, não mais do que isto. A linguagem, no alto rendimento desportivo, deverá também, privilegiar o diálogo e não monólogo. É verdade que é o treinador quem decide, por fim, mas com a síntese do que sabia e do que aprendeu no diálogo com os seus adjuntos e com os seus jogadores. A verdade científica, no desporto, como em qualquer ciência hermenêutico-humana, deixou de concentrar-se numa pessoa só, ou até unicamente nos gabinetes e nos laboratórios universitários de um certo “magisterdixismo” porque, na prática desportiva, cada um dos praticantes recria um mundo significativo comum.
Há um mês, a convite da Universidade da Beira Interior, na companhia do Dr. José Lima, responsável do PNED/IPDJ, e de um atleta, o Carlos Lopes, que encheu o nosso País de espanto e de hosanas, pelas suas inesquecíveis vitórias, fui até à Covilhã palestrar aos alunos e professores do curso de Ciências do Desporto. Como sempre faço, aproveito a presença de quem me oferece um vasto e variado repertório, para questionar, para aprender um pouco (ou muito) mais e para registar o que ouvi, no meu caderno de viagens (para que nem tudo se dilua nos recessos da minha débil memória). Em determinada fase da conversa, sem se esbater em pormenores técnicos, disse-nos o Carlos Lopes: “O meu treinador, o Professor Mário Moniz Pereira, era, talvez, no atletismo, o melhor treinador do mundo. Pois não havia treino que ele me determinasse que eu, de mim para mim, não tentasse ver se era, ou não, o treino que mais me convinha. Acreditava piamente no Mário Moniz Pereira, mas acreditava também no que me dizia o meu corpo e até o meu estado mental”.
E filosofou: “O atleta que só cumpre ordens nunca será um campeão”. De facto, como ser de razão ético-prática, o ser humano é um fim em si mesmo e nunca deverá ser olhado como simples meio. Ele, o ser humano, “está dotado de um valor intrínseco absoluto” a que E. Kant deu o nome de “dignidade”. Porque muito respeitou o Professor Mário Moniz Pereira, porque muito se respeitou a si mesmo, o Carlos Lopes foi um campeão. E manifestou, sobre o mais, cultura desportiva, que é tecnociência e consciência, onde cabem um constante espírito crítico (e autocrítico) e também a capacidade para viver numa comunidade solidária e legal, ou seja, com deveres e com direitos, como sujeito, afinal. E ser sujeito é não sujeitar-se…"

Tempo desperdiçado é jogo adiado

" “Conciliar os interesses instalados com a necessária reforma da Governação da FIFA, tendo presentes assuntos tão complexos como, por exemplo, os Fundos de Investimentos, «match fixing», o fim das cláusulas de rescisão contratual, o «fair-play» financeiro, calendários competitivos conjugados com as provas internacionais; o dirimir de conflitos entre intermediários, clubes e jogadores de futebol; as janelas de transferências, restringindo-as, sem contender, com o direito ao trabalho (…); a titularidade das participações das sociedades desportivas e a origem dos fundos monetários para aquisição de direitos económicos, novas tecnologias no futebol; o controlo das transferências de menores de idade e o papel das academias, entre outros, são desafios vencidos ou adiados?” (Jerry Silva, Desafios e Rumos para Vencer, 2016;53)
Se as entidades que tutelam o nosso futebol tivessem sabido aproveitar a leitura do livro citado (entre outros) que além de pistas para futuro, de “radiografia” precisa da actualidade, permite caracterizar vícios que se alastram há décadas, poderiam ter arrancado mais cedo com decisões ajustadas, conseguindo prever e antecipar alguns problemas e polémicas. A ausência de contraditório, de abertura para diálogos mobilizadores, ainda não integra os critérios decisivos para transformar eleições em partidas para a vitória. Evitar que o jogo se adultere é tarefa nobre, indispensável e prioritária.
Vivemos um tempo de murmúrios e desabafos com anonimatos (medo?!) e não um tempo de frontalidade. As redes sociais não podem esgotar as hipóteses de afirmação do nosso descontentamento, há sempre mais a fazer. O populismo invade as fronteiras e com isso as “élites” apoderam-se do poder e da riqueza, aprisionando a liberdade com estratégias ancestrais… No futebol também. Mas o ADN do futebol é a coragem, que atinge dimensões extremas, por exemplo, no momento de finalização, no voo salvador do guarda-redes ou nos duelos (1x1) em que o domínio da bola simula a conquista do “mundo”. Essa coragem é indispensável para identificar, averiguar e resolver também, com a eficácia possível, o domínio com que a globalização do capital invade os clubes. Algumas vezes, graças a divulgação mediática, conseguem-se compreender tristes realidades e lamentáveis dependências sem que as diversas entidades que o deviam fazer, “disputem o jogo com garra e para vencer” definitivamente: será por incompetência ou por outra qualquer razão?
Todo o mundo consegue sugerir agravamento de sanções (por cá também é moda corrente), sabendo certamente que essa medida pode trazer em si uma enorme carga demagógica e exclusivamente com utilidade para a imagem repentina de quem as sugere. Fazer é sempre muito mais difícil do que dizer… Importa que as leis sejam adequadas, rigorosas, aplicadas, enquadrando um controlo e vigilância constantes, sem flutuações nem impunidades. Antes de “endurecer” as penas há muito a alterar e, eventualmente, alguma incapacidade e limitação para o fazer. Há momentos que são exemplares, que nos emocionam e encantam pela firmeza de carácter. Há momentos em que as condições criam imensa fragilidade (por exemplo, salários em atraso e não só). Há outros momentos que são dramáticas e infelizes fatalidades.
Mais do que grandes entrevistas, do que renascimentos éticos de ex-Donos da Bola, mais do que deslocações e envolvimento de Órgãos de Soberania, importam o exemplo e a coerência de quem exerce funções:
- “Olha para o que eu digo e não para o que eu faço” é ditado popular que serve bem para reflexão e para uma mudança mais radical – “Olha para o que eu faço e analisa se corresponde ao que eu digo”. A ética que se exige aos outros tem de ser a mesma que nos caracteriza a todos. Por vezes, amigos que ocupam funções de relevo no nosso futebol (e não só) afirmam-me que nem sempre se pode dizer o que se pensa pois é preciso ter “diplomacia” ao defender as nossas posições. Se essa “diplomacia” for sinónimo se servilismo, de obediência total a quem decide, de “compra” de silêncios, então será melhor mudar o termo e as pessoas que ocupam esses lugares. A incompetência e o oportunismo carreirista criam “buracos negros”, alguns impossíveis de esquecer, sempre com tardias e ineficazes substituições. Quem atira a primeira pedra, mesmo sem enquadrar o acontecimento na estrutura que o criou? Quem atira a primeira pedra, quando o previsível e alertado nunca foi tratado com a urgência que merecia? Quem atira a primeira pedra, quando quem dirige pode não ser um bom exemplo? Quem atira a primeira pedra, mesmo sabendo que “tudo vai ser questionado” provavelmente para nada (ou quase nada) mudar? Quem atira a primeira pedra, aos que fogem aos diálogos e ao contraditório?
No futebol (na família, na escola, no clube e com amigos) aprendemos a reforçar valores que nos orientam para tentar fazer sempre o melhor, a assumir as nossas convicções e a mudar comportamentos quando nos parecem evolução. A liberdade é um valor máximo desde que implique responsabilidade e responsabilização individual. Que 2018 não seja mais do mesmo. A Humanidade está perante desafios globais complexos. Urge mudar com ambição, com justiça, construindo confiança e solidariedade onde outros querem ver muros, valorizando a vida como um direito com dignidade e não como mais uma oportunidade para escravizar e alastrar miséria. Em termos de futebol, que se consiga distinguir o essencial do acessório, que nunca se perca a marca do saber fazer com portugalidade, que os clubes, especialmente os que se dedicam à formação, tenham muitos e maiores apoios, que se decida com imparcialidade, que as polémicas não extravasem para além dos limites da emoção momentânea do jogo e, já agora, que se criem condições para fazer, no Natal, a Festa da Família no Futebol (há quem a designe por Boxing Day). Preservar o futebol de influências estranhas e fraudulentas, envolver os agentes desportivos numa mesma missão, prestigiar o talento e o jogo de excelência e, por fim, que a Selecção Portuguesa consiga um grande Mundial na Rússia, são alguns dos nossos desejos."

Benfiquismo (DCCV)

Vamos a eles...

O paradoxo da galinha

"Jogando como ponta direita, Juan Manuel Fangio tinha a velocidade inata dos que dominam os volantes...

vários anos, em São Tomé, eu conduzia um jeep meio desconjuntado em plena escuridão ao longo da estrada que liga a Praia do Micondo à Ribeira Afonso. Talvez surja algum iluminado a descobrir nesta frase alguma conotação racista, mas a verdade é que eu na altura precisava de qualquer espécie de iluminação. Atravessei aldeolas sem um pingo de luz que não fosse a do luar. E as aldeolas surgiam de surpresa nas curvas da estrada cheias de gente na beira do caminho, negras como a noite. De repente ouvi um grito: «O branco matou a galinha!» O branco era eu. A galinha atravessou-se na minha frente e ainda bem que não passava de uma galinha.
Sou um crente no Paradoxo de Sampetersburgo: «O valor de um objecto deve ser determinado em função da sua utilidade e não do seu preço».
Não imagino sequer o valor de uma galinha naquele lugar entre a Praia do Micondo e a Ribeira Afonso.
Calculo que a sua utilidade morta seja maior do que viva, ovos à parte. Não parei para saber do estado do galináceo.
Talvez houvesse um ou outro menos agradado com a minha falta de destreza na condução de um jeep todo desconjuntado. Não sou nenhum Fangio.
Era aqui que queria chegar: Juan Manuel Fangio.
13 de julho de 1930. Campo desportivo Plaza Oeste, em Ayacucho, Argentina. O Atlético de Ayacucho preparava-se para enfrentar um dos seus rivais das proximidades, o Club Ferroviarios de Balcarce. O povo, em volta do rectângulo, estava decidido a não perder pitada. Até porque havia uma figura elegante, esguia, que suscitava atenções, sobretudo femininas.
Tinha uma alcunha: El Chueco. Ou seja, O Ladrão.
Nessa tarde, os Ferroviarios de Balcarce alinharam desta forma:
Fiematt; Alonso e Realli; Guangiro, Li, Papa e Juno; Fangio, Bergara, Boti, Castillo e Cavalotti. 
Fangio era El Chueco.
Juan Manuel Fangio.
Os Ferroviarios tinham tido outro nome: Rivadavia.
Na primeira prova na qual participou como piloto, Fangio deu-se a conhecer como Rivadavia.
Ainda não era Fangio.
Dizem os jornais da época que El Chueco se destacava como ponta direita velocíssimo. Não precisava de volante para explodir como um Fórmula 1 por entre as defesas adversárias.
Havia nele a febre da rapidez. Um vício, se quiserem.
Stirling Moss foi, provavelmente, o maior adversário de Fangio nas pistas. Contava: «O mais curioso é que ele tinha as pernas muito tortas, em forma de arco. Eu ficava espantado com a sua capacidade de dominar a bola. Era extraordinário!».
Aos 17 anos já tinha passado por vários clubes diferentes, do Alem ao Mitre.
Mas a sua cabeça funcionava como uma máquina.
Em 1929, apaixonou-se definitivamente pelos automóveis.
Em breve ganhava provas: com o nome de Rivadavia.
Aceite-se: Juan Manuel Fangio tinha uma dívida com o Destino e o Destino não deixa de cobrar as suas dívidas.
Por muito que gostasse de futebol, por maior que fosse o prazer de sentir a bola nos pés e partir com ela em desfilada de encontro às hordas de adversários, coube-lhe ser o piloto mais famoso de todos os tempos. Fangio e os volantes confundem-se.
As suas pernas arqueadas foram mestras na arte dos travões, aceleradores e embraiagens.
Disse um dia: «Depois de ter cumprido o serviço militar, recebi um convite para ir jogar em Mar Del Plata. Era tentador. Eu sabia que na minha terra não podia evoluir como jogador. E gostava de desporto. Qualquer modalidade. Também joguei basquetebol. Depois tive de desistir para me dedicar aos automóveis».
Os argentinos são gente com o coração ao pé da boca. Basta escutar Mi Buenos Aires Querido na voz de Gardel. Ou aquelas canções lavadas a whisky que Piazzola pôs na boca de Amelita Baltar.
Fangio e Di Stéfano foram amores pelos quais a Argentina chorou. Houve quem os comparasse: precocemente calvos, tardiamente campeões. Às vezes, a gente esquece-se e a história também: Fangio foi cinco vezes campeão do mundo mas entre os 40 e os 46 anos. E Sterling Moss, exclamava, comovido: «Muito do que aprendi com ele foi conduzindo atrás dele. Ele tomava a dianteira, porque era o melhor, e nós seguíamo-lo atentos à forma como guiava. Eram verdadeiras lições».
Talvez Juan Manuel Fangio não tenha ensinado ninguém a jogar futebol. Disparava pela direita, ultrapassando adversários. Tinha em si a verdade imutável do paradoxo: e não tinha preço…
Estou certo que, ao contrário de mim, naquela noite africana entre a Praia do Micondo e Ribeira Afonso, não mataria a galinha. Tinha mãos demasiado firmes para assassinatos de pacotilha."