"Estes são os meus votos para o desporto português, em 2018: mais cultura, repito: mais cultura e que esta cultura seja prática e teoria, seja vida e não só retórica, seja profecia e não só memória. Começo com a conhecida definição de cultura de Malinowski (Une théorie scientifique de la culture, Maspero, 1968) : “Trata-se evidentemente de uma totalidade onde entram os utensílios e os bens de consumo, as normas orgânicas que regulam os diversos agrupamentos sociais, as ideias e as artes, as crenças e os costumes. Observemos uma cultura muito simples e primitiva ou, pelo contrário, uma cultura complexa, muito evoluída: estamos sempre perante um vasto aparelho, em parte material, em parte humano e ainda, em parte, espiritual, que permite ao homem enfrentar os problemas concretos e precisos que lhe são colocados”.
A cultura define-se, em primeiro lugar, como uma totalidade, que é o conjunto do que resulta do trabalho e da criatividade do ser humano, em contraste com o que é natural, com o que o ser humano não fez. Costuma distinguir-se a cultura popular da cultura erudita ou alta cultura, como o faziam os humanistas, que chamavam “bárbaros” aos que não ostentassem uma superior cultura literária, próxima dos nomes maiores da Antiguidade Clássica. No entanto, para mim, não há ninguém inculto. Como Ralph Linton o acentuava, “todas as sociedades têm uma cultura, por mais simples que pareça e todos os seres humanos são cultos, no sentido de que são sempre participantes de uma qualquer cultura” (Le fondement culturelle de la personnalité, Dunod, p. 3). De quanto precede se conclui que não há “homens incultos” e que, pela linguagem, a cultura se conhece, se compreende e se transforma. Desde os mais notados humanismos da Renascença, a cultura se estuda como criação e tradição, como imitação e criatividade. Afinal, cultos são os que não se deixam reduzir a um só arquétipo e procuram, procuram sempre… até, como actualmente, outras formas de dizer Deus!
A cultura resume, portanto, a nossa mundividência, os nossos métodos, as nossas aspirações. Nenhum comportamento nosso (não me refiro a casos excepcionais) é vazio de sentido. E a nossa linguagem assim o revela. Mas, como acima o referi, a cultura é uma totalidade, onde não há prática sem teoria, nem teoria sem prática. Cultos não são aqueles que, na sua “torre de marfim”, adormecem sobre pesados in-fólios e o seu mundo é o mundo literário da sua biblioteca. A cultura desportiva supõe a prática, a vivência de um “agente do desporto” (atleta, treinador, dirigente, médico, fisioterapeuta, etc.) e a teorização do significado e do sentido do desporto, na lógica do desenvolvimento político, social, humano. O desporto, ao libertar-se do cartesianismo e do positivismo, ao fazer trabalho interdisciplinar com as ciências da educação e o paradigma biomédico, tem de afirmar, antes do mais, que tem um estatuto epistemológico inconfundível, intransferível, por outras palavras: que é um texto onde pode ler-se a conduta humana, a dialética social, no movimento intencional e em equipa da transcendência.
Lembrando o conceito de “inscrição”, em Paul Ricoeur, tudo o que é prática desportiva é texto que permite interpretações e leituras várias, que permite o estudo e a análise do contexto e, usando as palavras de Habermas, do “agir comunicacional”. E é neste “agir comunicacional” que a competição desportiva ganha sentido, se revela cultura. Em Habermas, ser racional implica argumentação, discussão, debate. Ser desportista implica a discussão e argumentação e debate, típicos da competição desportiva, emancipada e fraterna. A promoção e a realização do desporto devem satisfazer, portanto, o que emerge de solidário, no diálogo e no consenso da competição desportiva. Ora, diálogo e consenso, em texto, contexto e sistema desportivo, situa o desporto no âmbito das ciências hermenêutico-humanas e é agente e fator de cultura.
“A cultura não é mais do que um conjunto de textos”. É o Clifford Geertz quem no diz, na sua La Interpretacion de las culturas (editora Gedisa, Barcelona, 1992). E o que é a cultura desportiva senão um conjunto de textos? E textos não tanto do Homem, ao jeito do geral, do universal, do global do discurso universitário, mas também de homens que sofrem e cantam e gritam e choram, na prática desportiva. E, assim, porque intensamente sentem o que fazem, em qualquer futebolista, ou andebolista, ou basquetebolista, ou praticante de natação e ginástica e atletismo, etc., etc., um pequeno facto leva-nos sempre à interpretação de grandes questões.
E, se o treinador não tiver em conta estas grandes questões, que formam a base da conduta dos atletas, não pode entendê-los. Há treinadores que se encontram tão próximos dos jogadores que podem, diariamente, cumprimenta-los e tão longe que não conseguem compreendê-los. A cultura, para estes treinadores (e dirigentes, poderia acrescentar) não lhes dá acesso às crenças, aos sentimentos dos seus jogadores. Donde o facto, mais frequente do que se pensa, de o seu discurso não chegar aos jogadores, como princípios fundantes, mas como palavras, palavras, palavras, com muito plebeísmo à mistura.
A “linguagem do futebol” (um exemplo) é, demasiadas vezes, isto mesmo, não mais do que isto. A linguagem, no alto rendimento desportivo, deverá também, privilegiar o diálogo e não monólogo. É verdade que é o treinador quem decide, por fim, mas com a síntese do que sabia e do que aprendeu no diálogo com os seus adjuntos e com os seus jogadores. A verdade científica, no desporto, como em qualquer ciência hermenêutico-humana, deixou de concentrar-se numa pessoa só, ou até unicamente nos gabinetes e nos laboratórios universitários de um certo “magisterdixismo” porque, na prática desportiva, cada um dos praticantes recria um mundo significativo comum.
Há um mês, a convite da Universidade da Beira Interior, na companhia do Dr. José Lima, responsável do PNED/IPDJ, e de um atleta, o Carlos Lopes, que encheu o nosso País de espanto e de hosanas, pelas suas inesquecíveis vitórias, fui até à Covilhã palestrar aos alunos e professores do curso de Ciências do Desporto. Como sempre faço, aproveito a presença de quem me oferece um vasto e variado repertório, para questionar, para aprender um pouco (ou muito) mais e para registar o que ouvi, no meu caderno de viagens (para que nem tudo se dilua nos recessos da minha débil memória). Em determinada fase da conversa, sem se esbater em pormenores técnicos, disse-nos o Carlos Lopes: “O meu treinador, o Professor Mário Moniz Pereira, era, talvez, no atletismo, o melhor treinador do mundo. Pois não havia treino que ele me determinasse que eu, de mim para mim, não tentasse ver se era, ou não, o treino que mais me convinha. Acreditava piamente no Mário Moniz Pereira, mas acreditava também no que me dizia o meu corpo e até o meu estado mental”.
E filosofou: “O atleta que só cumpre ordens nunca será um campeão”. De facto, como ser de razão ético-prática, o ser humano é um fim em si mesmo e nunca deverá ser olhado como simples meio. Ele, o ser humano, “está dotado de um valor intrínseco absoluto” a que E. Kant deu o nome de “dignidade”. Porque muito respeitou o Professor Mário Moniz Pereira, porque muito se respeitou a si mesmo, o Carlos Lopes foi um campeão. E manifestou, sobre o mais, cultura desportiva, que é tecnociência e consciência, onde cabem um constante espírito crítico (e autocrítico) e também a capacidade para viver numa comunidade solidária e legal, ou seja, com deveres e com direitos, como sujeito, afinal. E ser sujeito é não sujeitar-se…"
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