"Esta chamada indústria também se pôs muito a jeito, ignorando sempre as crises cíclicas para as quais se achava imunizada
1. Não há 'bola', o que é bem diferente de não haver A Bola. Esta continua a acompanhar-me, diariamente, desde Fevereiro de 1995 e, antes, durante muitos anos, três ou quatro vezes por semana. Nesta rarefacção de inexistência de 'bola', bem compreendo a direcção e os jornalistas e os aplaudo pelo modo como têm sabido enfrentar esta inédita situação. Eu próprio, neste cantinho semanal que me é proporcionado, passei a deparar com a síndrome da angústia do tema ou temas a tratar. Todavia, também vejo estes tempos de bola adormecida - nem sempre bela adormecida - como uma oportunidade para reflectir sobre assuntos que, antes, eram sugados pela maior predominância actualista dos jogos e dos golos. Estamos, pois, numa espécie de defeso impositivo, diferente do defeso de Verão, onde sempre há (havia) o incomparável Tour de França que, este ano, até teria sido acompanhado pelos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Pressinto que vamos assistir, no próximo futuro, a uma revolução no futebol mundial e, por tabela, no futebol nacional, em razão de um vírus pandémico e de uma economia global ferida em alguns dos seus fundamentos e alicerces. E se, no momento em que escrevo, há uma indisfarçável dificuldade em ver com clareza o fim do roteiro sanitário de combate ao vírus, o que se passa na economia e no plano social é de todo incalculável e jamais previsto nesta magnitude e nesta escala planetária.
Sendo assim, também todos os parâmetros nos quais se tem baseado a actividade futebolística estão a sofrer um abalo tsunâmico, de que ainda estamos longe de alcançar todas as consequências. A única certeza que podemos prever é que nada ficará como dantes. O que vai, quando vai e como vai acontecer não se pode garantir.
Em boa verdade, esta chamada indústria também se pôs muito a jeito, ignorando sempre as crises cíclicas para as quais se achava imunizada, não cuidando de encurtar diferenças profundas entre clubes num mesmo país e entre clubes em competições internacionais, promovendo um ambiente de um futebol sinónimo de riqueza, de ricos e de ricaços, ignorando que a larga maioria dos seus players estiveram sempre na margem da subsistência, consentindo que os custos de intermediação fossem uma forma de saque e do domínio consentido sobre a rentabilidade futura dos clubes, deixando-se enlevar por uma espiral de custos salariais suportados por uma bolha de publicidade enganosa, promovendo o excesso do número de jogos e competições inventadas, e fechando os olhos a formas ínvias de negócios designadamente em modo off shore.
2. O futebol oscila entre tudo inflacionado e tudo mendigado. Entre a exportação selectiva do produto e a sua importação aos magotes. Entre protegidos e protectores, e esquecidos e tutelados. Onde aparentemente tudo é igual, mas sempre se cuida de haver algo que é mais igual que o resto. Onde o fascínio da árvore das patacas frondosa e imponente anula ou dificulta a visão da floresta de todos as árvores grandes e pequenas.
Na grande maioria dos clubes, o equilíbrio só se vinha alcançado por via de receitas extraordinárias (designadamente transferências), pelo inchamento das receitas resultantes de direitos televisivos mal distribuídos e de outros proveitos de natureza comercial ou publicitária, pelo endividamento que mais não é que a fuga para a frente que outros terá de pagar, ou, em certos casos, pela alteração da estrutura societária, pelo comprometimento do futuro em razão do presente, pouco se cuidou da parcimónia e sustentabilidade da despesa. Assim se inverteu a lógica racional de um (qualquer) negócio: em vez de uma melhor e mais racional despesa presente e futura para não se estar tão dependente de receita contingente, preferiu-se desta para continuar a alimentar custos que não deixaram de subir. Por outros palavras: em vez de gastar em função do rigor da certeza, optou-se por partir da incerteza para 'falsificar' a despesa.
Muitas perguntas se põem neste tempo tão imprevisível. Como irão evoluir as receitas televisivas, por sua vez, financiadas por publicidade e marketing, por sua vez, sujeitas drasticamente a uma redução da produção de bens e serviços? O que vai acontecer ao 'mercado do futebol' com valores de transferências e montantes das cláusulas de rescisão, que agora se vê tão claramente como desajustados e provindos de um mundo à parte? Este ponto é de grande importância para os clubes portugueses que têm feito de alienação de 'activos' a principal fonte de um instável equilíbrio, sabendo-se agora que, além do efeito temporário da recessão económica, estarão feridas estruturalmente as possibilidades de negócios como o de João Félix ou até Bruno Fernandes, recordes dos seus clubes que jamais serão batidos. Como vai ser reduzida a lógica de intermediação que atingiu percentagens elevadas a montantes injustificados? Como vai a ainda rica UEFA conciliar a gulosa Champions de uns muito poucos com um novo paradigma mais racional e justo? Como vão as federações e ligas compatibilizar todos estes riscos em novos formatos que asseguram uma mais justa competitividade entre equipas? Como vão os clubes encontrar receitas alternativas para compensar as que vão desaparecer a previsível diminuição, ainda que temporária, de receitas de bilhética e de lugares de época nos estádios)? O que vai acontecer a clubes assediados por capitalismo endinheirados de ocasião, que prometem o paraíso? E há muitas outras perguntas, ainda sem resposta...
3. Volto à possibilidade ou não de se poderem finalizar as competições nacionais. É quase um dado adquirido que não haverá recomeço desta época. Mas, tenho lido que, pelo menos, se coloca a hipótese de a concluir com os estádios vazios. Já nesta coluna falei com isso é a negação do desporto. E não deixa de ser irónico que 'jogo à porta fechada', que era até agora considerado uma punição disciplinar, se pudesse transformar para 80 jogos (os que falta fazer na Liga) numa solução. A ironia do paradoxo...
No imediato prazo, há um ponto que se coloca. É o relativo aos salários de todos os que trabalham nas sociedades desportivas (e não apenas dos jogadores e técnicos). Com duas abordagens evidentemente distintas. Começando pela dos clubes cuja médica salarial é baixa (a maioria), e que poderão entrar rapidamente em incumprimento, importa salvaguardar na aprovada legislação sobre lay-off a sua elegibilidade nos termos gerais, ou seja a de uma redução de 1/3 do salário durante a forçada inactividade e de financiamento de 70% dos outros 2/3 pela Segurança Social (até ao limite de 3 vezes o salário mínimo). Quanto aos (poucos) clubes com salários elevados ou muito elevados, agora sem jogos, sem actividade, com quebra de receitas, parece óbvio que se deve aplicar a mesma legislação (à data em que escrevo, ainda não são conhecidos os decretos), obviamente com um encargo bastante mais elevado das SAD, por que o limite atrás citado pouco compensa a média salarial dos jogadores. Assim haveria a redução temporária salatial de 1/3, nos meses de obrigatória inactividade. Não vale a pena inventar ou tentar encontrar outros caminhos quando a lei geral aí está. Nunca se poderá justificar que a inactividade implique a redução de 1/3 nos trabalhadores em geral e que, mais uma vez, os futebolistas dela estivessem isentos. Além de que há futebolistas que ganham mais num mês do que muita gente em grande parte da sua carreira.
Contraluz
- Exemplar: Os quatro mais poderosos e abastados clubes da Bundesliga (Bayern, Borussia Dortmund, Leipzig e Leverkusen) vão ajudar outros clubes da mesma competição. Não que seja por lá inédito, pois, há anos, até o grande clube de Munique ajudou o seu principal rival de Dortmund a sair de uma falência anunciada. Alguém imagina isto noutros ligas?
- Comparação: O Papa Francisco, no meio da Praça de São Pedro completamente vazia, a falar ao mundo, numa tão expressiva e comovente alegoria espiritual sobre os tempos que ora vivemos. Estádios desportivos onde se jogou (e pode vir a jogar) sem pessoas, numa outra alegoria que significa e desvirtuação do espírito do desporto.
- Aniversários: Dois grandes benfiquistas fizeram anos da passada semana de quarentena (o que me vai também acontecer). Refiro-me a Artur Santos, um meu ídolo dos anos 50 e início de 60, um senhor exemplar, com quem, há semanas, tive a oportunidade de estar numa visita guiada ao Benfica Campus com a minha neta Joana. E, 41 anos mais novo, Rui Costa, um jogador que fazia do futebol um poema sobre a relva através da sua bola-caneta e que continua, felizmente, sempre ligado ao seu clube de coração. A ambos, aqui do Alto Alentejo, os meus parabéns."
Bagão Félix, in A Bola