"Leio nos jornais que Rui Costa, antigo príncipe florentino, fez 48 anos. Fake news, claro. Rui Costa, toda a gente sabe, tem menos vinte anos, tem 28, a idade que tinha naquele jogo em Eindhoven, contra a Inglaterra, no Euro 2000. Ontem revi o jogo.
Portugal 3, Inglaterra 2 e vi o único Rui Costa que existe e existirá para sempre, o que tem 28 anos, a pisar o relvado como um ser imaginário pesadíssimo sem bola e capaz de levitar quando a bola lhe chegava aos pés, com aquele ar de falso cansado de quem pensa o jogo todo por antecipação, qual bilharista batido, a descobrir companheiros nas nesgas de terreno esquecidas pelos ingleses, a cruzar a bola com precisão, mas não demasiada, apenas o suficiente para João Vieira Pinto voar ao encontro dela e aplicar-lhe o golpe que a lançou numa trajectória milagrosa, todo um tratado de física, de movimento e dinâmica dos corpos, ao qual o pobre David Seaman assistiu com o espanto de um aluno do 8.º ano.
Rui Costa, quase em queda, a isolar Nuno Gomes. Rui Costa a ver o jogo de cima, como um urbanista, a decidir onde irá construir o parque, a escola, a fábrica e todas as alamedas rasgadas pelos seus passes e, depois, com um só toque, um daqueles toques com o lado exterior da bota que faziam passar indecorosamente a bola por entre as pernas do adversário (será um dos melhores cuequistas de sempre?), a destruir o projecto por ele idealizado e a erguer um novo num segundo.
Como é que este Rui Costa pode fazer 48 anos? Impossível. Um génio destes tem 28 anos. Ponto. Vá, 32, no máximo. A idade que tinha naquela noite no Estádio da Luz, em 2004, outra vez contra a Inglaterra. Desta vez, vindo do banco. Já não era o príncipe incontestado. Da geração de ouro, restavam poucos.
Deco, n.º 20 nas costas, era o novo 10. Os anos já lhe iam pesando nas pernas, mas a cabeça via melhor do que nunca. Além disso, estava em casa. O estádio era novo, mas era o mesmo. Foi ali, foi que eu vi, logo na primeira vez que entrei no estádio da Luz, Junho de 1991, meia-final do mundial de juniores contra a Austrália, as torres de iluminação, o ruído de 110 mil almas, uma sensação de vertigem, foi ali que ele marcou o primeiro golo à Rui Costa e nunca mais o esquecemos.
Foi ali, sabem, que três anos depois, contra o Parma, ele fez aquele passe de génio a pôr Isaías na cara do guarda-redes e que lhe pôs no passaporte o carimbo com destino a Florença. Foi ali, numa noite chuvosa, que ele arrancou mais um formidável pontapé que confirmou a nossa viagem para Inglaterra, para o Euro-96.
Portanto, eles deviam saber que ali era a casa dele e que não há melhor lugar para um guerreiro que vê chegar o fim, e ele, velho de batalhas, levantou-se e levantou o estádio com outro golo saído dos pés que as redes daquelas balizas bem conheciam e amavam.
Vá. Trinta e dois anos ainda acredito, 48 é que não. É idade de professor de educação física saturado de dar aulas em escolas da periferia de Lisboa. É idade de secretário de estado. De fiscalista.
Não, não me enganam.
Bem pode Rui Costa aparecer de fato e gravata, administrador da SAD, e até pode ser muito competente nas suas funções, mas o que é a competência administrativa comparado com o que ontem revi, aquela primeira parte contra a Inglaterra?
Compatriotas, nunca jogámos assim.
A verdade é essa. Fernando Santos pode agradecer aos santinhos, invocar Nossa Senhora do Jogar Feio, agradecer ao Éder-do-outro-mundo, mas aquela primeira parte contra a Inglaterra, no ano 2000 de tantos prodígios imaginados e tão poucos cumpridos, desculpem lá, mas fico eu com ela.
Naquela tarde, eu estava de regresso a casa vindo de Lisboa. Quando saí do barco no Barreiro, perdíamos por 2-0. Cheguei a casa a tempo de ver João Pinto a fazer o empate e, na emoção do momento, atirar o meu avô, leve como uma pena, leve como o João Pinto, ao ar, e levantei-o mais como se tivesse sido ele a marcar o golo, e ele esticou os braços, quase derrubando o velho candeeiro da sala, como se o tivesse marcado, e a minha avó, que não gostava de jogos, ria-se com a nossa coreografia feliz, um bailado entre gerações, quarenta anos num único salto de alegria.
Hoje os meus avós já não estão cá, eu já não tenho os 22 anos que tinha e agora sou escritor e tenho uma boa idade para ser escritor, 42 anos, idade de escritor, mas o Rui Costa é que não tem, nem nunca terá, 48 anos, porque ainda ontem o vi em Eindhoven, um príncipe, ainda ontem o vi a pintar aquele futebol pontilhista, desenhado de cor com os seus cúmplices, Figo e João Vieira Pinto. Ainda ontem ele tinha 28 anos, como é que os jornais podem dizer que fez 48, idade de administrador da SAD?
Vá lá, Rui, deixa-te de merdas, pá, escreve aos jornais e diz-lhes que se enganaram. Vá, pega na bola e mostra-lhes que tens 28 anos, príncipe, 28 anos acabados de fazer ontem, em Eindhoven, na tarde em que, nos meus braços, o meu avô foi pena."
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