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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Carta ao Pai Natal de um benfiquista ambicioso

"Querido Pai Natal,
Escrevo-te (permite-me o tratamento informal) por saber que também não vives sem o vermelho e branco. Sendo o Benfica um clube do Mundo, o nome do Glorioso já ressoará, faz anos, no Pólo Norte, pelo que são dispensáveis quaisquer apresentações. Como tal, vou directo ao assunto.
Em primeiro lugar, o primeiro lugar. Quero o Benfica campeão. É este o meu mais premente desejo de Natal. Como sou paciente, não me importo de esperar até os idos de maio – até porque imagino a canseira que deve ser a tua noite de 24 de dezembro, correndo mais casas que um candidato à presidência de uma junta de freguesia.
No entanto, uma prenda antecipada não perde o valor por isso, pelo que aceitaria de bom grado festejar mais cedo do que é tradicional – não sou daqueles que se agarram cegamente às tradições (sabes de quem falo e estou convicto de que estão na tua lista dos marotos). De resto, até dava jeito encerrar a questão do campeonato com alguma urgência, uma vez que o meu segundo desejo é…
… uma grande campanha na Liga Europa (ou uma grande caminhada europeia, como lhe chamam aqueles que julgam que utilizar chavões de Liga dos Campeões ao falar da segunda prova de clubes da Europa a torna mais do que isso, tentando assemelhá-la à competição onde, de facto, devia estar o Benfica).
Ainda que a prova não seja condizente com a – histórica e, de momento, latente – grandeza europeia do clube da Luz, vencê-la deveria ser uma obrigação. Ainda assim, e acedendo relutantemente à desculpa (sem aspas) de que jogar à quinta-feira e aos fins-de-semana torna difícil a gestão da época e dos objectivos traçados, aceito que a chegada às meias-finais possa ser suficiente para se considerar “grande” a campanha benfiquista na Liga Europa.
O meu terceiro desejo revela um salto abismal no nível de exigência e, talvez, seja algo só ao alcance do outro tipo barbudo que também mora num sítio mágico indefinido a que, vulgarmente, dão a designação de Paraíso. Quero o Benfica nas meias-finais da Liga dos Campeões (se o meu Eu de cinco anos soubesse que um dia viria a escrever ao Pai Natal a pedir meias…).
Sei que parece missão impossível, mas o futebol a espaços demonstrado pelo Benfica de Bruno Lage faz-me sonhar (que ainda não se paga, eu verifiquei no Orçamento de Estado 2020). Faz-me acreditar que a continuação da aposta sustentada na formação aliada a um reforço cirúrgico do plantel pode vir a resultar no ressurgimento do verdadeiro Glorioso Benfica – “de que tanto se fala e tão pouco se sabe o que é” -, como escreveu, sobre o amor, Almeida Garrett.
De resto, uma boa campanha na Youth League e títulos nas modalidades de pavilhão que têm trabalhado para os merecer – não te preocupes com o andebol, só desperdiçarás o teu tempo – complementariam bem o embrulho. E é tu… Espera, há mais uma coisa (eu podia ter apagado, é só para dramatizar). Mediante as tuas possibilidades, seria deveras agradável voltar a ver o Mágico nos pavilhões da Luz – ele já disse que ia deixar o Inter Movistar, vê lá isso.
Sem mais delongas, por falta de conteúdo, despeço-me cordialmente. Aguardo pelos presentes com a tranquilidade que adquiri no seminário de verão ministrado pelo Paulo Bento. Respeitosamente,"

O Cantinho do Olivier #19

Reflexão natalícia

"Têm sido cometidos alguns erros feios, graves e até inexplicáveis

Esta podia ser uma crónica igual a tantas outras, que falaria sobre o impacto positivo da época no espírito natalício de todos nós. Podia ser também uma mensagem de esperança, paz e alegria, pedindo o melhor de cada um, a cada um. Podia ser tudo isso e muito mais, mas... não é.
Sendo certo que é importante termos presente a essência do que nos move nesta quadra, é também importante que percebamos, em matéria de futebol, onde estamos e para onde queremos ir.
Na parte que me toca, a da arbitragem, o papel é ingrato, porque estive lá dentro muitos anos e sei bem o que é errar sem maldade. Hoje, a minha função exige-se exactamente o mesmo: análise imparcial, independência e liberdade. Liberdade para dizer o que penso, baseado na lei e na experiência acumulada.
Essa liberdade - que é transversal e caminha, solta, pelo caminho que percorre - tende a ter os seus momentos de aperto, por que não raras vezes sente uma espécie de pressão camuflada que a tenta limitar. É tipo uma cortina de fumo invisível que parece querer abafar ou balizar a opinião, pedindo-lhe, sem pedir, que se renda a uma qualquer forma de status quo vigente.
Obviamente que essa nuvem negra vem de fora e nunca se vê. Mas não sendo palpável, mostra que ainda há quem não esteja habituado à modernice que é haver alguém de alma arejada, que responde, apenas e só, à sua consciência.
Essa liberdade permitir-me, por exemplo, afirmar aquilo que é óbvio para todos: em termos de arbitragem, as coisas não têm corrido bem. Têm sido cometidos alguns erros feios, graves e até inexplicáveis. Erros que a tecnologia tem agora a obrigação de evitar ou atenuar, o que só não acontece, experiência, competência e, por vezes, de coragem de alguns dos seus agentes. Infelizmente, alguns desses erros (os mais mediáticos) têm sido o mote que tantos precisam para a vitimização, para o desvio de atenções e para o fomentar de guerrilhas que nada têm a ver com arbitragem ou, sequer, com futebol. Incomoda-me que nos ponhamos a jeito para sermos a arma de arremesso de uns contra outros.
A outra parte da reflexão que esta liberdade permite é a de lançar uma pergunta final: será que, na verdade, o nosso futebol merece arbitragem melhores? O mesmo futebol que tem estádios vazios e que divide receitas televisivas de forma tão desequilibrada e incongruente? O mesmo futebol que aprova um calendário com pausas prolongadas, que poucos percebem, entendem e aceitam? O mesmo futebol que insiste em ter casos de polícia a amontoarem-se nas prateleiras da justiça? O mesmo futebol que se distancia, cada vez mais, da competitividade internacional e que se move, internamente, por um campeonato de dois ou três e pouco mais? Então o mal do nosso futebol assentará, na realidade, nos erros de árbitros e VAR ou não há aqui matéria para elevarmos a discussão para outro patamar? Não é para quem quer. É só para quem pode... e nem todos podem.
Boas-festas."

Duarte Gomes, in A Bola

Benfiquismo (MCCCXCIII)

Quarteto...

Natal digital

"Num tempo global e digital, o presépio cedeu lugar ao átrio do centro comercial (...) a chaminé dos sonhos infantis virou rede social

1. Hoje é dia de Consoada natalícia. Resolvi, por isso, que esta crónica semanal não abordará o futebol e afins. Assim lhe dou descanso ou, melhor dito, sou eu a dele descansar. No boxing day voltarei ao futebol, para me deliciar com a tradição na velha Inglaterra. Hoje, o meu «contador da Luz» aborda a Luz do Natal sem contador.
É certo que o Natal já não é o que era, apesar da tradição. Para um católico como eu, é difícil descortinar a celebração simbólica do nascimento do Menino Jesus no meio de tanta materialidade e futilidade que tende a capturar as pessoas. Agora, é sinónimo de frenesim, angústia, pressa, maçada, tecnologia, obrigação e até hipocrisia, numa coligação entre cristãos de meia-tigela, agnósticos e ateus traduzida na apoplexia comercial e na conjugação mecanicamente reduzidas e uma liturgia profana.
Acontece que, neste ambiente cada vez mais hostil, o Natal ainda resiste em ser o símbolo máximo da Vida. Hoje, como há 2000 anos, continua a estar também impregnado de doçura maternal. Maria deu à luz o Seu Filho na discrição e despojada de conforto, mas plena de doçura. «Anuncio-vos uma grande alegria» (Lc, 2,10) é a mensagem das mensagens. Suavemente, simboliza a vitória da vida sobre a morte.
Gosto do gosto por um Natal com a magia que advém (e não desaparece) do imaginário infantil feito de sonho, doçura, afecto, idealismo, bondade. De um Natal que seja capaz de, por uns instantes, tornar os adultos mais crianças e as crianças mais meninos e meninas. De um Natal, em que o melhor não é só a data e o que ela representa do nascimento do Menino-Deus, como também é a atmosfera dos dias que o antecedem, porque o melhor não é o chegar, mas o ir ao encontro de, não é o possuir, mas vivenciar.
Há espírito doce na ambiência e na icnografia natalícias. Na alegria esperançosa lida nos olhos das crianças, ainda imunes à vulgarização da data. No presépio renovado. No pinheiro de Natal e nas pinhas resinosas. Na temperança de Belchior, Baltasar e Gaspar e na fragrância do incenso. Na fértil romã que dá sabor à união das partes. Na estrela-do-Natal, que nos olha no meio de companheiras flores.
Mas há uma indisfarçável amargura no Natal com a pressa do nada, do que se compra com o peso do vácuo ou, já na ausência do pensar, dos litros de ansiedade destilados. No Natal impositivo, que quase anula o tempo e o espaço para se olhar o outro, olhos nos olhos. No Natal que passa sem se passar. Tal como nos fotografias e selfies que se tiram para depois exibir o que se fotografou sem nunca se ter visto com os olhos.
O que obra em consumismo desenfreado, falta em espiritualidade adventista. É assim cada vez mais, perante a primazia do de(ter), do comprar, do usar, do trocar. Uma correria sem nexo, acorrentada pela obrigação, mais do que alimentada pelo coração. Atafulha-se o Natal em listas e preçários. A alegria de dar cede lugar à amargura de ter de dar. A serenidade do pensamento da escolha cede passo em favor do turbilhão de uma escolha que já não o é. Uma permuta instrumental que transforma o prazer de dar em desprazer de despachar. Agora, até o Natal é antecedido por uma nova mercearia com nome inglês, pois claro: Black Friday. Nisso somos imparáveis, importamos tudo o que seja consumismo. É aproveitar a ilusão (e, às vezes, atrafulhice) dos preços em regime ioió, quer dizer, subindo para depois descer e descendo para depois subir.

2. Gosto da ideia de esperança que engravida o Natal, e que, botanicamente, associo à natureza do musgo do presépio.
Musgo de esperança? Como então, se o pobre musgo nem sequer tem raízes, como briófita que assim nasceu? Como então, se não tem sementes para se reproduzir, nem flores e frutos como fonte de vida? Como então, se está condenado ao nanismo por não ter um verdadeiro sistema vascular de condução da seiva?
Todavia, insisto na defesa do musgo como sinal de esperança. Para isso esforço-me por peregrinar até ao Natal da Vida. E lá deleitar-me com a memória doce de quem me deu vida.
O musgo é, por definição, sinestésico. No seu cheiro inigualável em terra molhada, no seu aveludado tatuar, na quietude da sua extensão, no olhar enternecido de quem nos quer aconchegar no presépio.
E é um milagre da natureza:estes minúsculos corpos nem provém dos óvulos de um ovário, nem têm um embrião e, no entanto, germinam como uma semente. De vida.

3. Num tempo global e digital, o presépio cedeu lugar ao átrio do centro comercial, a árvore natalícia tem agora apenas a medida de ver qual é a mais alta numa corrida de tipo Guiness, o igreja é substituída pelos templos e wonderland de diversão, a chaminé dos sonhos infantis virou rede social digitalizada em série e transformou-se na cadência ininterrupta de sons dos telemóveis a anunciar não sei o quê. Esta corrida começa cada vez mais cedo, agora em Outubro, numa prática que tudo banaliza e num jogo de luzes que tudo mercantiliza. Descobrir um nicho de silêncio luminoso para parar e sentir é um achado no meio de tanto ruído, luzências e holofotes. O Natal, festa da vida, do lar e da família, trespassou-se para a rua. A surpresa que alimentava o espírito da quadra e fortalecia o valor da raridade é definitivamente tornada uma avalancha já sabida ou requerida, onde não se dá valor a nada de um falso tudo e se acha que qualquer escolha pode ser feita sem renunciar a nada.
No fim, a exaustão do corpo, a carência do espírito, a inutilidade do gasto, a velocidade uniformemente acelerada da compra precipitada, o vácuo depois da apolexia. E lá se foi o Natal. Mais um.

4. Agora que vivemos no tempo dos smartphones e das redes sociais, outro martírio se nos depara. A enxurrada de «Boas Festas» e outras expressões do momento cai, em inusitada abundância, nas nossas maquinetas mais ou menos «smart». Confesso que tenho saudade do tempo em que, por esta época festiva, se falava com quem verdadeiramente queríamos. Agora é sempre a andar em jeito de poluição de afectos: centenas de SMS (e mails) de conhecidos, desconhecidos, ignotos, chatos e insinuantes. Sem selecção, sem critério, ao dispor de um dedilhar num ecrã insensível. Abomino, sobretudo, os que logo percebo que foram enviados para um vasto conjunto de «amigos», ou pior ainda, para «car@s amig@s, com «beijos ou abraços» ou, na linguagem cifrada «abreijos» para todos. E, também, os que, na obsessiva preocupação de não caírem nas palavras simples e mais usadas, nos enviam bizantinices florentinas, em prosa ou falso verso, que, de tão kitsch, me fazem perder o apetite mesmo diante de um saboroso bolo-rei.
Aproveito para clamar por uns dias natalícios sem um «tsunami de SMS e quejandos». Depois de falar com quem quero, o meu telemóvel vai tirar uns dias de férias, remetendo-se a um silêncio que ele próprio me implora...

5. Há uns dias, entre luzes e luzinhas, estive numa sala de espera de um serviço médico cerca de meia-hora. Durante esse tempo, entraram sete pessoas, jovens adultos. Ninguém cumprimentou ninguém. Ninguém olhou para ninguém. Todos usando o seu smartphone sem um segundo sequer de interrupção. Observando as suas faces, posso pressupor que estavam a festejar um qualquer natalzinho digital, via Facebook, WhatsApp, e outras ferramentas-meios transformadas em fins.
Cheguei a acsa, e comecei a ler um livro que recomendo a quem ainda não está possuído pela turbulência tecnológica. Chama-se »Minimalismo digital», de Carl Newport, e convida-nos a viver melhor com menos tecnologia e a reflectir sobre as consequências do «demasiado». O livro começa, aliás, com uma citação saudavelmente provocativa: «Eu costumava ser um ser humano»...
Poupado, à tangente, pelo malfadado acordo ortográfico que retirou a maiúscula aos meses, estações do ano, pontos cardeais, etc., o Natal vai também perdendo a singularidade da maiúscula e adquirindo a pluralidade do vazio, assim se transformando o Natal em natais.
Pela minha parte, não abdico de festejar o Natal do nascimento d'Aquele em que acredito. No encontro e no reencontro. Com o futuro gerado no passado. Com azevinho, alecrim e rosmaninho."

Bagão Félix, in A Bola