"Depois de ter perdido (2-4) na sua estreia pela selecção nacional, Eusébio foi a Wembley defrontar a Inglaterra e encantar as 100 mil pessoas que enchiam o estádio. Os ingleses são especialistas em lendas. Fizeram-no entrar na lenda. Para sempre.
Era para ter escrito este texto na passada semana. Ou, melhor, para ter publicado este testo na passada semana. Depois morreu o nosso amigo Jordão, e foi uma necessidade falar sobre ele.
Agora volto a Eusébio. Que foi rei no tempo em que Jordão foi príncipe.
A propósito do Portugal-Luxemburgo, trouxe aqui a estreia de Eusébio pela selecção nacional, no Luxemburgo, sofrendo a pesada e inacreditável derrota por 2-4.
Ficava longe o Mundial de 1962.
Logo a seguir ao Luxemburgo, Eusébio vestiu a camisola dos cinco escudos azuis em Wembley, face à Inglaterra.
Passou a ser universal!
Yves Léonard: sociólogo francês, professor no Institute de Sciences-Politiques de Paris. Em 2001, deslocou-se a Lisboa para uma conferência sobre o tema O Lusotroplicalismo e o Futebol Português nos Anos 60. Pena é que tenha de ser um francês a estudar uma matéria que deveria entusiasmar muitos sociólogos portugueses.
Em Wembley, nesse primeiro jogo de Eusébio em solo inglês - quase ia a escrever na 'glorious mud', como eles gostam de dizer -, a selecção nacional entrou em campo com dez jogadores nascidos fora do rectângulo continental. O que sobrava veio ao mundo a duas braçadas de Espanha, o que não deixa de ser irónico.
Dominacano Barrocal Gomes Cavém: nascido em 1932, em Vila Real de Santo António; treze anos de Benfica, mais de quatrocentos jogos, mais de cem golos.
Havia um açoriano: Mário Lino.
Havia um brasileiro: Lúcio.
Todos os outros eram africanos: Costa Pereira, Hilário, Pérides, Vicente, Coluna e Eusébio (Moçambique); Águas e Yaúca (Angola).
O seleccionador era angolano: Fernando Peyroteo.
O treinador era brasileiro: Otto Glória.
Yves Leónard: 'A França pretendeu, no Campeonato do Mundo de 1998, com o slogan 'black, blanc, beur' - negro, branco e magrebino - ser a precursora da mistura de raças no futebol mundial. Esqueceu-se de que Portugal já o havia feito mais de trinta anos antes'.
EusébiOiro!
A Inglaterra ganhou o jogo depressa: aos 11 minutos já fizera o resultado que duraria até final - 2-0. Mas a reacção portuguesa foi valente: uma hora de ataque porfiado e quatro bolas ao pote que fariam com que esse Inglaterra - Portugal ficasse conhecido pelo 'Jogo da Madeira'.
Eusébio foi um furacão inquieto e ameaçador.
100 mil pessoas esgotaram Wembley. Recorde de receita: 52 500 libras esterlinas. Isto é: 4200 contos ao câmbio da época. Todas elas foram testemunhas privilegiadas da revolta do melhor jogador português de todos os tempos.
15 minutos - pontapé acrobático, em moinho, que falha a baliza por um triz;
17 minutos - remate forte, de muito longe, o guarda-redes Springett só à segunda defende;
24 minutos - finta sobre Flowers, seu adversário directo, e remate pronto: Springett é atingido pela bola com tanta violência, que se desequilibra e a deixa fugir para a frente, onde Águas surge com um segundo de atraso para a recarga.
42 minutos - recebe um passe de Águas e remate espontaneamente a centímetros da baliza;
47 minutos - pontapé tremendo ao poste direito de Springett;
84 minutos - pontapé tremendo ao poste direito de Springett; novo remate na recarga, para fora.
Já por vezes tinham chamado a Eusébio 'A Pérola Negra'. Foi então que lhe chamaram 'A Pantera Negra'.
Os jornalistas ingleses sempre gostaram de prosas infestadas de imagens e alegorias. É precisamente essa a razão por que o seu futebol está tão repleto de lendas.
Frank McGhee, jornalista do Daily Sketch: 'Eusébio foi o tecto do edifício no seu primeiro jogo perante cem mil pessoas. Ele terá, no futebol europeu, um nome tão grande como o de Puskas, e os seus golos mantê-lo-ão no pódio da glória durante longe tempo. Tem um trabalho de pernas de um professor de dança, e um remate com ambos os pés que faz a bola atingir a velocidade de um raio!'
David Winterbottom, seleccionador inglês: 'Eusébio é um perigo! Verdadeiramente fantástico! Se mesmo com a apertada marcaão de Flowers fez o que fez, sem ela não sei o que nos poderia ter acontecido'.
Bobby Charlton, jogador da Inglaterra e do Manchester United: 'Eusébio não é um jogador de futuro, pela simples razão de que é, já, um avançado maravilhoso. Melhor do que ele é difícil ver-se em qualquer parte do mundo!'
Johnny Haynes, capitão da selecção inglesa: 'Eusébio é excepcional! Dizem-me que ganha apenas 50 libras por mês!!!? É possível!!!? Eu, se tivesse a sua categoria e ganhasse isso, fazia grave!?
Roy Peskett, cronista do Daily Mail: 'Eusébio, interior-direito de 19 anos, o felino negro de Moçambique, que jogava em Wembley o seu segundo jogo internacional, mostrou-se credor de todos os elogios que prodigamente lhe são feitos. É espantoso!'
Disse-o há pouco: os ingleses são os maiores especialistas do mundo em lendas. As reportagens publicadas na imprensa britânica nos dias que se seguiram ao confronto de Londres foram como que o escorar dos muros espessos da lenda da 'Pantera Negra'.
Ficou para sempre!"
Afonso de Melo, in O Benfica