"Quatro estrategas entram num bar para debater ideias sobre o jogo e o ‘calcio’ volta de novo a ser interessante mais de três décadas depois
Lembro-me bem. O Pelusa era o Sol inesgotável – e ainda o é, anos depois de se tornar Supernova - e à sua sombra e talvez também da do Vesúvio, à beira de Nápoles, aparecia Careca. Völler, Berthold, Hässler, Aldair, Cafú e Falcão são romanos em Roma, revezando-se. Gladiadores esgotados e feridos, profundamente orgulhosos, a deixar o Coliseu.
O farto bigode de Cerezo tomara o lugar do de Souness, o tal que mais tarde defenderia as big balls de Michael Thomas (que não vêm ao caso), e também Trevor Francis deixara de morar na cidade-estado. República marítima de Génova, terra de marinheiros e mercadores, gravados no escudo da Samp. O velejador com o seu cachimbo, a olhar para o mar, numa calma eterna que não chegou para Mikhaijlichenko. O russo falha aí as suas maiores promessas.
Kaiser Passarella, doutor Sócrates e el Petete Bertoni vestiam-se de violeta, a cor da Fiorentina, que Rui Costa, Batigol e animal Edmundo também passearam com orgulho tão monumental quanto Santa Maria del Fiore, o Duomo de Florença.
De Duomo para Duomo. Hateley era inglês como Herbert Kliplin, que nos últimos suspiros do século XIX fundou o Milan Foot-Ball and Cricket Club, porém em campo os maiores pilares são trasladados da Holanda. Rijkaard, Van Basten e Gullit tornam-se alicerces de um Milan avassalador. Boban e Savicevic fundir-se-iam depois no primeiro 10 composto, decalcado anos depois, noutros terrenos, por Xavi e Iniesta.
Mais linear é o rival Inter. Karl-Heinz, o Rummenigge, abre caminho para os compatriotas Matthäus, Brehme e Cataklinsmann e para o argentino Ramón Díaz no lado azul listado da Lombardia. Corta aí a linha de meta, em 1997, Ronaldo Fenômeno, provavelmente ainda perseguido por defesas do Valência ou do Compostela.
Platini faz panelinha com Boniek e puxa os cordelinhos no Piemonte, onde também cresce uma predileção por alemães: Kohler, Reuter e Möller. Guardiães do tempo da Velha Senhora. Zico leva a folha-seca para Udine, antes de Balbo e Sensini começarem a fazer das suas. Um a dar, outro a tirar. Dirceu ainda grita um ou outro golo pelo Verona, porém é Pressen Elkjaer o espantoso comboio desgovernado, capaz de saltar e voltar aos carris - será que em Copenhaga ainda existe o célebre grafitti «O que faremos se Jesus voltar? Colocamos Pressen numa das alas!»? -, com Briegel a tentar acompanhar.
O mais velho dos Laudrup, Gazza e mais um Karl-Heinz, o Riedle, vestiram o azul laziale, tal como Nedved, Mihajlovic e Salas. Platt aparece no Bari. Cannigia e Strömberg incendeiam Bérgamo e a Atalanta. Thuram, Crespo, Verón, Asprilla, Brolin e Couto transpiram a camisola copinho de leite do Parma. Futre chega tarde e cheio de azar a Reggio Emilia. É fintado pelo próprio sonho num arranque pela direita, estilhaçando-se em fragmentos de vermelho-sangue no chão.
E os da casa? Vialli. Mancini. Carnevale. Maldini. Baresi. Baggio, Dino e il divino codino Roberto. Zola. Costacurta. Lombardo. Ferrara. Serena. Giannini. Ah, Giannini, que classe! Antognoni, outro. Conti. Donadoni. Scirea. Cabrini. Tardelli. Rossi. Colovatti. Vierchowod. Ancelotti. Ainda vi don Carletto recuperar muitas bolas no meio-campo de Parma, Roma e Milan. Graziani. Altobelli. Signori. Buffon. Nesta. Cannavaro. Totti. Fuser. Conte, já tremendamente calvo e parcialmente descabelado. Já não o é. E tantos outros.
Nos bancos, agigantavam-se generais como Capello, Lippi e Trapattoni, revolucionários como Sacchi ou Scala, cavalheiros como Eriksson ou Bearzot, excêntricos como Zeman. Itália, a bela Itália, foi o centro do mundo. Um mundo romântico.
No calcio, não há meios-termos. A emoção transborda das expressões, conversas, de todas as situações, é oito ou oitenta. Os oriundi entranham-se na história até que se decide fechar a porta aos estrangeiros e de novo escancará-la outra vez. Os escândalos nunca são menores, abanam as fundações de todo o país. Criam fissuras que demoram décadas a reparar. Algumas são mesmo irrecuperáveis. Primeiro, o Totonero, depois o Calciopoli, que na verdade foi mais um Calciocaos. Bosman virou lei e foi o último prego no caixão. A capital do jogo mudou-se para Espanha e a seguir para Inglaterra.
Quem viveu a adolescência e início da vida adulta entre os anos 80 e 90 tem saudades dessa liga barroca, superlativa, recheada de jogadores grandiosos, os melhores que havia. Um verdadeiro Olimpo terrestre para números 10, que no seu tempo não tinham rival, fora ou dentro das respetivas equipas. O calcio era arrebatador, um futebol de super-heróis para decalcar na vida real.
Nunca mais teremos algo parecido. Inglaterra é Inglaterra, é o resultado de uma cozinha de fusão que virou moda. É o futebol-gourmet, feito pelos melhores com os melhores ingredientes, todavia, por vezes falta-lhe tempero. A Itália de 80 e 90 é irrecuperável. O espaço que havia já não existe e com este desapareceram os 10, a elegância e a arte de criar. O fantasista já não respira. No entanto, persiste aquilo que nos pode devolver a curiosidade: a estratégia.
Paulo Fonseca vai levar o ataque posicional para um Milan que há anos só está bem a contra-atacar. Simone Inzaghi olha para os demais com o ar desafiador de quem atingiu o ponto certo de maturação da ideia. Thiago Motta promete revolução em Turim e Conte já dança para que o Vesúvio entre em erupção. Que riqueza, amigos!"