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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Um mecânico de automóveis apaixonado por Marie Claire

"A juventude de Mário Coluna tem episódios sem igual: fugiu de casa para João Belo à procura de emprego e o pai ordenou-lhe o regresso a Lourenço Marques; foi campeão pelo Desportivo e namorou na Ilha Maurícia.


Coluna é Coluna! Dificilmente se explica a grandeza deste nome. Mário Esteves Coluna, o mais carismático capitão da história do Benfica!
Aos dezasseis anos deita-se ao trabalho que o Futebol não dá para os gastos e a família é humilde. Torna-se aprendiz de mecânico de automóveis no Almoxarifado da Fazenda de Lourenço Marques. Primeiro ordenado: 1.500 escudos. Nada mau! Nada mau!
Ficou apaixonado pelos automóveis toda a vida.
Teria outras paixões...
Coluna é Coluna!
A história da sua vida já devia ter dado um livro - até eu já devia ter metido mãos à obra, mas haverá por certo em outros talento mais autêntico e conhecimentos mais aprofundados - deste jogador formidável que, poucos o saberão, foi recordistas de salto em altura da Província de Moçambique com a excelente marca para a época de 1,835 metros.
Não lhe bastava. Queria tudo e mais tudo. Foi um corredor emérito dos 400 e 800 metros, somando medalhas e mais medalhas.
Era por vezes um solitário. Introvertido. A confusão própria da miudagem, risos, galhofa, gritos, incomodavam-no quando em excesso. E então isolava-se. Meditativo.
Nele houve sempre a calma serena dos pensadores.
Na Idade adulta, já no Benfica e com o estatuto único que conquistou, manteve o hábito da reflexão. Era um homem interior: talvez daí muito do seu mistério.
Fui procurar aos arquivos dos jornais, que são o repositório maior da história do Futebol em Portugal umas memórias de Coluna contadas por ele próprio. Deparei com uma entrevista concedida ao meu velho colega e amigo Carlos Arsénio e com esta passagem interessante:
- Eu queria trabalhar! Fazer-me gente, lutando pelo meu sustento sem necessidade de estar constantemente a importunar os meus pais. E um belo dia resolvi fugir para João Belo. O Ferroviário local, sabendo do meu interesse em conseguir o tão ambicionado emprego ofereceu-me uma colocação com a condição de que teria de passar a representar o clube. Não pensei duas vezes e concordei sem que o meu pai soubesse. Tratei das coisas em silêncio e disse que ia um dia a João Belo a casa de um amigo. Assim foi. Já em João Belo, com o caso praticamente resolvido, escrevi a meu pai, contando-lhe a verdade e seriamente esperançado na sua colaboração. Mas, qual quê! Meu pai imediatamente me decretou que fizesse as malas, deixasse João Belo e regressasse a Lourenço Marques onde já havia arranjado emprego para mim. Finalmente não haviam sido em vão os meus esforços. Já não seria mais um senhor desempregado.

Certa vez, na Maurícia
Coluna regressa a Lourenço Marques e entra como aprendiz de mecânico na tal oficina de automóveis, orgulhoso do seu novo macaco.
O Futebol não passa, nesse tempo, de uma acessório da sua vida de mecânico. Volta a vestir a camisola do Desportivo de Lourenço Marques mas reduz-se ao prazer dos lances, dos passes, dos golos em remates poderosos que fizeram a sua marca. Nada de muito sério...
Comparado com o que ganhava na oficina, os 500 escudos que o Desportivo lhe pagava não ia além de uma pequena avença para ajudar as contas mensais.
A promoção à primeira categoria acabou por ser um motivo de alegria para o pai que fora guarda-redes do clube.
- Com dezassete anos e dois contos por mês já me sentia um senhor importante. E enquanto os mil e quinhentos escudos do trabalho voavam direitinhos para casa ajudar a família, os quinhentos paus eram para as minhas despesas. Secretamente. Porque o meu pai não sabia dessa minha verba «clandestina».
Decorria o ano de 1952. Mário Coluna foi campeão de Lourenço Marques e o melhor marcador da equipa. Como prémio, o Desportivo oferece aos seus campeões uma deslocação à ilha Maurícia. As derrotas (0-5 e 2-6) foram duas e a vitória única (4-1) contra selecções locais.
Mas houve uma vitória especial. Apaixonou-se. A rapariga chamava-se Marie Claire e era difícil entenderem-se porque ela só falava francês.
«Amores de Verão enterram-se na areia», diz o povo. Há muita areia na Ilha Maurícia.
Coluna regressou a casa com uma fotografia no bolso: Marie Claire.
Não voltou a ouvir falar dela.
Faltava muito pouco para embarcar na viagem da sua vida: em direcção a Lisboa e ao Benfica."

Afonso de Melo, in O Benfica

Campeão a nu

"No Estádio ou na TV, o país inteiro viu um jogador do Benfica tal como veio ao mundo. 'E sem bolinha...'

«Isto hoje é dia de festa. Vai ser uma loucura». ouvia-se antes do jogo. E foi! Foi dia de celebrar a conquista de mais um título, o de Campeão Nacional 1982/83.
A 29 de Maio de 1983, o Benfica disputava, em casa, frente ao Sporting, a penúltima jornada do Campeonato Nacional. O título já tinha sido alcançado na jornada anterior, em Portimão, mas, «embora a festa lá estivesse estado presente», a verdadeira comemoração tinha sido adiada para essa tarde, na Luz.
O desafio decorria de acordo com a normalidade até que, cerca de um quarto de hora de apito final, os adeptos começaram «a estragar a vedação» e a amontoar-se em torno do campo, «sobre as linhas laterais». Começava a tomar forma a invasão!
Pouco depois, o árbitro deu o desafio por terminado. Um mar de gente desatou a correr campo adentro, «até duas senhoras bem grávidas pularam sobre o esboço da barreira e foram também ver os craques mais de perto». Foi uma autêntica «'cavalgada' do público sobre os jogadores». Todos queriam tocar nos seus ídolos e arrancar-lhes uma recordação.
Os jogadores ainda tentaram correr para os balneários para «escapar àquele saque bem-intencionado», mas foram totalmente demovidos pelos «invasores». Shéu, que ia desmaiando, declarou: «se não morri hoje, também já não morro tão depressa». António Bastos Lopes, por sua vez, enfureceu-se «com tão exagerado carinho». Contudo, Álvaro Magalhães terá sido, sem dúvida, o mais lesado. «Eu bem queria fugir para o balneário, mas não consegui (...) Fui logo agarrado e 'engolido' pela multidão. Lá se foi a camisola, as botas, as meias, os calções e... imagine-se, até a roupa interior. Fiquei nuzinho, ali no meio do relvado, tal como vim ao mundo». Mas a sua história não ficaria por aqui: «Mais à noite, no 'Domingo Desportivo', aquelas imagens correram o País, ainda por cima deram várias vezes eu a fugir, completamente nu, com o pirilau à mostra... que vergonha».
«Foi uma autêntica barafunda», «a relva ia ficando careca de tanta gente ali colar o pelo». E a festa continuou fora da Luz, «milhares de benfiquistas festejaram rijamente» pelas ruas de Lisboa.
No Museu Benfica - Cosme Damião, na área 6. Campeões sempre, encontra o vídeo do título com imagens da invasão de campo."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica