"O zé-povinho diz que odeia ver na TV as discussões alarves e que ama de paixão gente séria e bem-intencionada. Grave é acreditar nisso...
Está a tornar-se moda, no futebol, a discussão alarve. Para todos aqueles que são realmente alarves, a notícia é óptima. Para aqueles que têm dois planos de testa, a notícia não é boa, mas também não surpreende, porque vivemos num país em que a maior angústia é não se poder nivelar tudo por baixo. Os rendimentos, claro, mas também a inteligência das pessoas, coisa que apesar de muitos esforços e tentativas, a natureza faz questão de não deixar.
A discussão no e do futebol português está em saldo em qualquer banca cigana de uma televisão perto de si. São programas legítimos de entretenimento, verdadeiras produções de ficção nacional, com a vantagem dos actores saírem muito mais baratos.
Assim vista, a coisa nem sequer seria malévola. Na lamentável ausência de novo fôlego de gatos fedorentos, ou, pelo menos, de novo assomo de energia do Ricardo Araújo Pereira, o povo, que continua, como nunca, a precisar de pão e de circo, vai-se divertindo com as grotescas cenas dos túneis filmados em 'reality shows' com o ridículo dos 'bonecos' de supostos adeptos de clubes e com toda a sorte de arte de novos palhaços.
Também há excepções à regra, é verdade. Há gente 'limpinha, limpinha' a falar e a analisar o futebol, gente que tenta e até muito se esforça por respeitar o jogo e os seus intérpretes, que procura valorizar o espectáculo e o mundo do futebol, mas o problema é que mal se ouvem no meio do ruído ensurdecedor que os outros fazem.
Claro que o nosso inefável Zé Povinho diz que odeia os artistas do caos e ama de paixão a gente séria e bem intencionada que tenta puxar o futebol para cima. Desgraçadamente, são os primeiros que vêem e não os outros.
Esta estranha incongruência entre o que as pessoas fazem que gostam e o que as pessoas verdadeiramente consomem é o que faz abalar a credibilidade das sondagens e das estatísticas com base nos inquéritos de rua feitos a gente anónima. Há muitos anos que sei de experiência feita que muita dessa gente, ao ser questionada sobre consumo, sexo, cultura, jornais, televisão, o que quer que lhe seja perguntado, responde como acha que gostaria de ser e não como é, na realidade.
Recordo um tempo em que A Bola fez um inquérito nacional sobre o que as pessoas gostariam de ler no jornal e a grande maioria respondeu 'mais modalidades desportivas', que é coisa que, de facto, comprovadamente não desejavam ler.
Ora esta diferença entre o que as pessoas querem e o que as pessoas dizem que querem responde à dúvida que alguns mantêm por não saberem a razão pela qual tanta gente critica esses programas que os próprios consumidores consideram rascas e terem, afinal, esses programas altas ausências comprovadas. Muitas vezes encontramos pessoas que juram já não suportar ver esses programas de tanta guerra e tanto alarido no futebol e logo discorrerem, ao pormenor, sobre o que por lá se disse.
Será, pois, na realidade cultural média dos povos em países ditos desenvolvidos (poderíamos voltar ao fenómeno da eleição de Trump) que temos de encontrar a explicação para fenómenos de gosto popular pelo populismo de dirigentes, quer sejam eles candidatos à presidência de um país, quer sejam candidatos à presidência de um clube de futebol.
Ninguém consegue compreender verdadeiramente a razão das coisas limitando-se à crítica, por séria e persistente que seja, sem entender as verdadeiras causas. É preciso conhecê-las e compreendê-las sem preconceito e sem o receio de descobrirmos que os perigos que há uns anos pareciam tão longe de se concretizarem estão agora aqui tão perto.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola