"A 31 de Maio de 2008, o jogador português mais conhecido do mundo, Cristiano Ronaldo, era a capa do Suplemento do maior jornal de desporto em França, o jornal L’Équipe. Seria esse o ano Ronaldo, era a questão, depois da Premier League, da Liga dos Campeões, a presença do jogador na Selecção Nacional, após as circunstâncias vividas quatro anos antes, sugeria a possibilidade da vingança após a derrota contra a Grécia, na final do Euro 2004, em Portugal, país organizador. Dez anos depois, Ronaldo continua a fazer as primeiras páginas dos jornais do desporto em todo o mundo, o seu talento e a sua forma a imporem-se perante todos. Como é possível? Como se explica semelhante fenómeno? Naturalmente, a impulsão, bem como a força, a resistência, o equilíbrio, a coordenação, não explicam tudo. De facto, não explicam nada. Tudo isso têm hoje todos os outros grandes jogadores.
Conhece-se a história. Nascido a 5 de Fevereiro de 1985, no Funchal, a origem do menino de génio, com génio e, por vezes, de mau génio, encontra-se na classe trabalhadora mais pobre. Do pai recolhe o modelo inicial, o gosto pela bola, da mãe recebe o apoio incondicional, a força e a determinação, do irmão a expressão viva dos perigos que rondam a adolescência à deriva. Nesse lugar de onde vem, o carácter é construído na dureza, nas margens da sociedade bem estabelecida, da afluência artificial do turismo. Se o seu lugar social é marcado pela periferia e a desvantagem, a rua é o centro da sua existência, o seu espaço de liberdade, o espaço onde a sua paixão pela bola não conhece limites. Na adversidade, forja o seu carácter: rebelde, desafiante, rufia. E, aí também, o seu destino – a saída.
A bola, que não larga, representa o mundo. Um mundo que tenta escapar ao seu controlo e que o menino se obstina em querer dominar. Nesse exercício, na relação com a bola, no confronto com os outros miúdos, desenvolve a capacidade de ensaiar tudo quanto lhe é sugerido, pelo movimento da bola, quantos vezes preciso, quantas vezes inesperado, persegue o seu domínio, insiste e depara com a descoberta constante das suas orientações, das suas manhas, das suas derivas e nisso reside parte do fascínio que a bola lhe desperta, que o prende, a satisfação que o seu controlo lhe proporciona. É que, enquanto se dedica ao jogo com a bola, vai conhecendo os caprichos, desenham-se geometrias e forças, os lances, arriscam-se toques e jogadas, dribles e fintas, apoios e contactos, a bola sempre debaixo de olho, sempre junto ao corpo, o mundo de onde não quer ficar excluído a ser dominado aos poucos. Ao mesmo tempo, vai descobrindo-se a si mesmo, o que quer, o que procura, o que pode. A bola com a qual começa a ter uma relação particular, especial, única, esse elemento essencial de jogo, representa tudo o que existe, tudo o que é, o que depende dele, da sua acção, do seu jogo, sozinho ou acompanhado, esse é o mundo, um mundo em movimento a todas as velocidades, em todos os níveis, sinal de todos os desafios e que ele, aos poucos, determinado, aprende a conhecer e a controlar. Esse é um mundo que não espera, se desloca, apressado, o mundo afastado, do outro lado, escorregadio, evasivo, raso, picado, que ele persiste em conhecer em cada um dos seus efeitos, o mundo redondo que ele quer e irá dominar.
Controlar a bola. Nas horas que passa entretido, obstinado, a descarregar sobre ela as suas frustrações, todas as suas frustrações, a zanga dentro de si, o sentido vincado da discriminação, difícil de dizer, incompreensível mas sensível, nessa violência interior descobre a multiplicidade de meios técnicos a recorrer e submete essa forma redonda, circular, cósmica, à sua vontade imperiosa. Entre a bola e o menino, nessa relação poderosa, quem manda não será a bola. Entre chutos e pontapés, parado e em movimento, aprende que o que visa é difícil, e essa dificuldade atiça a vontade de fazer mais e melhor, espicaça-o a fazer e a refazer jogadas, a inventar ângulos, tangentes e velocidades, usar diferentes planos, ritmos e segmentos corporais, a driblar os oponentes, a conjungar tudo, dos pés à cabeça – numa interminável geometria fluída construída em pleno movimento. Como se a bola e ele fossem apenas um. Aos poucos, vai conhecendo-a, firmando o jogo, acentuando a experiência com esse alvo instável, susceptível, porém, de certa forma, controlável. Um processo que se esboça e inscreve de dentro para fora. De fora, a bola oferece o campo de descoberta. A provocar e a desafiar a dinâmica, a sugerir o jogo.
À sua volta, a família, sempre, envolve o pequeno. Em seguida, o clube, no Funchal, reforça a comunidade em que se encontra inserido. O corpo esguio, seco, ossudo. O rosto fechado, como quem tem contas a ajustar com alguém, contra alguma coisa. Envolvido pela família, é o mais novo de quatro irmãos, levado pelo pai aos treinos do clube do bairro, o Clube Desportivo das Andorinhas, relvado onde é fotografado, aos 8 anos - enquadrado de um lado pelo pai Dinis, ex-jogador e, do outro, talvez o treinador - e parte da equipa dos miúdos iniciados, equipamento azul claro, tamanhos grandes demais para a sua idade, aspecto particular a acentuar a idade dos jogadores. Dois anos depois, com o equipamento preto e branco do Clube Desportivo do Nacional da Madeira, rosto tenso e angustiado, expressão séria, sapatilha numa mão, meia e caneleira na outra, descalço do pé direito, cabelo quase rapado, parece ter terminado o jogo com algum problema. Em cada uma das fotografias do pequeno jogador, a expressão é sempre fechada, séria, a revolta contida. Família, clube, comunidade, rodeiam o miúdo de afecto, sentimento tornado a pouco e pouco admiração e respeito. Focado, longe da família e da ilha, no Sporting Clube de Portugal, em Lisboa, permanece trabalhador, disciplinado, determinado, impõe o reconhecimento.
Personalidade forte, reage com brusquidão inquieta ao riso dos colegas quando, no primeiro dia na escola do Sporting, é tratado por ‘Número 5’ e ele atira, com o sotaque da ilha, ‘Cristiano Ronaldo’!. No jogo, conquista o respeito e o reconhecimento dos seus pares. Pobre, insular, com sotaque, isolado da família, Ronaldo parece ter integrado profundamente em si, desde sempre, a moral do trabalho que caracterizava as classes mais desfavorecidas, o mundo operário, orgulhoso do seu corpo moldado pelo trabalho manual, braçal, suado, brilhante, talhado pelo esforço árduo, pela força, como estivadores, como cavadores, os rurais e os urbanos, das trincheiras e da construção, harmonia de músculos a cheirarem a trabalho, uma forma comum exibida nas mangas conservadas enroladas até ao limite, nas camisolas de mangas cavadas, as camisolas brancas de algodão, interiores usadas (antes das Tshirts serem produzidas e usadas no ocidente, em geral, no âmbito da fashion, hoje propostas na marca Armani, Versage, Hugo Boss ou afins) a desconfiança, a solidariedade e a cumplicidade criada no trabalho de grupo, o valor do mérito, da vitória, da recompensa em dinheiro, bem como nos festejos populares, entre os seus e não em cerimónias protocolares.
A magia da bola não deixa de ser exercida e rodeia, por sua vez, o menino: fortalece-lhe o carácter, desenvolve atitudes e movimentos, capacidade e técnicas, expande eixos e articulações, solta o corpo e os seus movimentos, rasga limites e regista possibilidades, inscreve marcas, memórias do corpo próprio, as estruturas do sensível às quais irão ajustar-se aos poucos as estruturas do perceptível. Entre as maneiras de fazer, as convencionais e as outras, as que ainda não foram descobertas, que não se conhecem e, por isso, não participam do grupo de possibilidades a aprender de fora para dentro. E de fora para dentro haveria, ainda, de vir a impôr-se mais tarde, o penoso trabalho de ginásio, específico, sistemático, submetido às máquinas (a maquinaria!), a intensidade, a regularidade, o esforço, o controlo e o afastamento dos limites impostos pela inércia, pela natureza. Depois dos treinos, irá permanecer no campo, concentrado, impõe o seu próprio tempo e a sua qualidade de treino. A bola toma conta da sua vida, domina tudo.
Os estudos históricos e sociais, psico-sociais, continuam a ser indispensáveis, pois contribuem para o reconhecimento, a identificação dos factos que, manifestos e personificados por grupos ou por indivíduos, como acontece com Ronaldo, com uma origem e uma história, que é sempre, sem dúvida, pessoal, e é também biológica e, acima de tudo, é parte de um colectivo, de um social, de um contexto onde todos os dados se cruzam, se sobrepõem e parecem confundir-se, podem ajudar à compreensão de algo, de alguém, encarado e sentido como excepcional. A estatística, a medida, a representação em 3D, por mais fascinantes que sejam, estão longe de poder contribuir e para explicar os factos do universo próprio do humano e do social que, aliás, servem. É para isso, também, e aliás, que o desporto, em especial o futebol pela sua popularidade, serve. Para nos arrancar da vulgaridade, do mesquinho, do que é desprezível, terreno, limitado, da paranóia da vida. É por isso que se paga o acesso ao espectáculo, um espectáculo que se exibe no campo, não fora dele. Por tudo isto, humano e extraordinário, Ronaldo, Cristiano Ronaldo, não será apenas o melhor do mundo. Nesse mundo redondo, que a bola simboliza em qualquer cultura, que atrai crianças e adultos, ele atinge o domínio cósmico, revela-se galáctico. Insatisfeito por natureza e por condição, isso não lhe chegará. A lenda há anos que é tecida pelo que o acompanhamos, de longe, no interesse e na expectativa. O futebol nunca mais será o mesmo. A técnica ‘de bicicleta’ exibida por Ronaldo no jogo da Juventus contra o Real Madrid, disputado a 3 de Abril deste ano, em Turin, não destaca apenas o corpo, a forma, a execução, a performance (a representação), de um jogador excepcional. Suspende, a 2.20 m do solo, tudo aquilo que o desporto é – um fenómeno que integra o psíquico, o fisiológico, o bio-mecânico, o psico-social. Que o desporto é, pode ser e foi, na ocasião.
Não se pode explicar qualquer fenómeno apenas por um encadeamento de forças e eixos, uma causa única, uma razão exclusiva. Ronaldo, através do que ele é e do que fez e faz, o salto e o remate em causa, personifica o símbolo. No momento em que executa a ‘técnica’, surpreendente pela elevação revelada, esse jogador em particular expõe a profunda complexidade do desporto, fenómeno animado, saturado do humano e social. Um nível de complexidade tal que podemos avançar apenas lentamente – que com pressa não se pensa, nem há tempo para reunir as informações, (no universo dos jornais e dos mídia, em geral, que o digam os bons jornalistas), nem se levantam os dados significativos necessários, nem a indispensável relação de dados, ordenando-os, interpretando-os, propondo uma explicação (sempre temporária). Nesse processo, haverá que considerar também, o movimento na sua análise psicológica, as motivações sentidas, as emoções vividas, os actos psíquicos e mentais, os factos sociais e psico-sociais, as institucionalizações, os aspectos morfológicos, as organizações e os modelos que as sustentam, os papéis sociais, as socializações. E ainda as atitudes, as condutas e os comportamentos, as práticas, as representações e os ritos, os princípios, as normas e os valores de toda a ordem, económicos, financeiros, éticos, religiosos, estéticos, políticos, a expressão de tudo, o cruzamento pelo qual se chega ali – ao céu. E se cai na terra. Nesse entrelaçado, nessa mousse do humano, que é sempre social, do social que nunca pode deixar de ser humano (ainda que possa revelar-se deshumano pois o humano desenvolve-se e reforça-se no social, na cultura, na história), nessa ´técnica’ concretizada a mais de dois metros do solo, aquele jogador é total: conjuga, integra, revela, expõe o desporto moderno, a sociedade actual em que vivemos. O lugar onde a tecnologia (domínio da natureza), o conjunto das regras (a regulação de todos), a auto-disciplina (o eu) convergem. Tudo concretizado na tomada de decisão em breves segundos. Esse homem não é deste mundo, claro – por breves momentos extraordinários. Isso sossega-nos. Melhor ainda, distrai-nos, diverte-nos – que é também para isso que o desporto serve. O problema, porém, é que ele é bem deste mundo, também. Ele não faz parte da história apenas, a história do tempo colectivo em que a sua vida participa. Ele próprio tem uma história. A ilha, os clubes de futebol madeirenses, o Sporting Clube de Portugal, o enorme Manchester United, e o excepcional Alex Ferguson, o Real Madrid, e José Mourinho, o Number One, e, finalmente, Zinedine Zidane, discreto, amigo, semelhante.
A força de carácter de Ronaldo, orgulhoso, arrogante, capaz, porém da maior humildade, capaz de não esconder as lágrimas, capaz de enorme generosidade, para com os seus e para com quer quer que seja que ele saiba necessitar de auxílio, protector e assumidamente o provider (no seio da família e no seio da equipa onde se torna, justamente, o capitão, o chefe, o líder – alto, atlético, bem parecido (good looking), vaidoso, multimilionário, sugeria ter conquistado já tudo. Ser o melhor do mundo. Melhor do que todos os ídolos do passado, que já é. Oriundo da periferia, marcado por uma situação que raia a discriminação, a exclusão social, a pobreza, conquista a pulso, o seu lugar – o melhor do mundo, o centro de tudo. De palavra presa, voz mal colocada, unhas roídas, pés de bailarino, atirados para fora, deformados pelo trabalho persistente, como Rudolf Nureyiev, consegue, entre a força e a fragilidade, algo que hoje em dia apenas o desporto e, talvez o futebol, consegue: a unidade. Unidade entre adeptos, entre adversários, uma unidade supra-clubística e supra-nacional. Num lance de génio, treinado vezes sem conta, que a arte dá muito trabalho, Ronaldo desfaz as diferenças, todas as distinções. Através do impossível, do extraordinário, acima daquilo que na repetição quotidiana compõe o conjunto das expectativas correntes, - Ronaldo liga os mais desprovidos, os under-dogs e os outros, torna-nos comuns, iguais, desfaz as barreiras, vinga todas as injustiças e, por breves momentos de carácter único, atinge – permite-nos tocar – o sagrado. Para nos largar, em seguida, pois o jogo continua e a sua busca não acabou. Ao Ronaldo, aqui envio o meu abraço. You’re doing well lad!"