"Acusar de crime (!) um clube por dar pistas ou ideias para que uma mensagem passe na comunicação social não lembra o diabo.
Futebolisticamente falando, esta época tem tido entre as suas palavras mais (e mal) ditas, uma que até parecia estar jazendo no sótão das memórias. Refiro-me a 'cartilha' e seus derivados. Dedico hoje os centímetros quadrados deste 'contador da luz' à crítica da cartilha pura e à crítica da cartilha prática, em jeito caricaturalmente kantiano, trocando a palavra razão pelo substantivo cartilha. Para isso, começo por pedir indulgência para alguns neologismos forçados por causa da dita cartilha.
É claro que quem gosta de a invocar, mesmo que a despropósito, não a estará a relacionar com a simbólica cartilha de João de Deus, que consistia num livrinho didáctico consagrado à alfabetização das criancinhas, embora haja quem, agora falando de cartilhas, bem precise de a ela voltar.
Nesta guerrilha ao desbarato, uma coisa é pior que uma cartilha. É cartilhar sobre a própria cartilha. De tal modo que o efeito da cartilha é uma mais do que superlativa cartilha do efeito. Assim cartilhando, cartilheiros há que se acham engraçados e assim artilhando se acham ilustrados.
Estou cem por cento à vontade porque eu nem facebuco, nem instagramo, nem tuito e 'the last but not the least', nem cartilho. Melhor e rectificando, de ora em vez, cartilho, mas comigo próprio.
Muito sinceramente, nunca percebi essa acusação de cartilhas e cartilheiros, embora - confesso - não aprecie estas práticas. Afinal, cartilhas é o que para aí há mais. No futebol, há a cartilha da selecção, em nome do último reduto de iconografia patriótica, há a cartilha de macacos estranhamente seguida por humanos, há a cartilha dos clubes cada um à sua moda e com mais ou menos cartilheiros encartados. Na política e respectivos comentadores é um fartar de cartilheiros (neste caso, não confundir com cartilagem). Nos partidos, evidentemente há cartilhas em profusão para não haver dissonâncias e ai o líder que tem militantes fora da partitura. Nas corporações, é só escutar uns tantos e ver que, quanto a interesses de grupo ou de classe, afinam todos pela mesma cartilha. Na igreja, não cometo a blasfémia de chamar cartilha à Bíblia. Etc., etc.
Que raio de acusação é a de chamar cartilheiro a alguém que comenta ou fala sobre o seu clube, seguindo uma narrativa (é assim que se diz, não é?) de defesa dos pontos de vista do clube que é o seu? Quererão, que desafinem ou quererão que, indirectamente, apoiem os clubes rivais? Até admito que se possa chamar de vistas curtas, sem rasgo, sem total independência, quem fala estritamente seguindo um qualquer guião e independentemente do contexto. Bem como todos sabemos que, nos clubes, há quem perore publicamente, umas vezes mais pela via oral, outras pelo uso da escrita, e tantas delas com apreciável má educação e obsessão conflituosa que está para além da urbanidade. É claro que há certos tempos e determinados espaços para os quais aquilo que seria o critério para afastar pessoas - cartilhadas ou não - acaba por ser determinante para a rebaldaria e o sangue de programas que se transformam em indigentes 'reality shows'. É o mundo dos odiocratas aquele que lidera as audiências.
Agora acusar de crime (!) um clube por dar pistas ou ideias para que uma mensagem passe na comunicação social não lembra o diabo. No entanto, repito que essa coisa de cartilhar não me entusiasma nada e até a vejo como uma forma de menorizar quem aceita tal jogo. E isto porque, para mim, o amor ao meu clube está acima de qualquer representação ou procuração temporária ou efémera de poder electivo ou outro qualquer poder fátuo. Por isso, sempre preservo a minha independência e jamais ouvi recados de quem que fosse, ainda que esteja consciente de que esta maneira de estar não é do agrado de quem acha que deveremos ser todos acefalamente seguidistas dos poderes estabelecidos. O lema do meu Benfica 'E pluribus unum' ('De muitos, um') não é convite à omissão de pensamento construtivamente crítico, antes uma forma de, pela concordância ou pela discordância serenas, dar o seu melhor contributo para a instituição. Ou será que, para os que se alimentam de ódio indisfarçado ao maior clube português, o nosso histórico e respeitável lema 'todos pelo Benfica' se tornou numa cartilha abjecta? Que mal há em uma direcção ou administração procurar que haja uma sintonia (que não sinfonia) com os que, em nome ou por causa do seu clube, exprimem pontos de vista dos media? Mas querem chamar-lhe cartilha? Pois que seja e que lhes faça bom proveito.
Bem sei que os rivais, em particular o FCP, nunca tiveram e nunca terão cartilheiros. Pureza absoluta. Sempre pensarem pela sua cabeça e, muitos deles até ousaram votar em sucessivas eleições norte-coreano. Ah! Esquecia-me dos directores de comunicação. Eles jamais tiveram ou têm cartilha. A não ser a cartilha do uso ilegal de alegados documentos alheios para os espalhar, com ar do mais puro legalismo fariseu. Quer dizer, não são cartilhados e muito menos cartilháveis. São só cartilhantes por via da mais nobre função ética que alguém pode almejar: a de se apropriarem, ilegítima e ilegalmente, do alheio para se servirem em proveito pretensamente próprio. Enfim, muitos críticos da cartilha são mais cartilheiros que os cartilhados. E não nos esqueçamos que a cartilha dos maldizentes e ressabiados sempre foi a hipocrisia.
Há um outro ponto que, se não fosse ridículo, até seria curioso: o da pretensa superioridade moral e da fingida supremacia intelectual dos cartilheiros contra a cartilha que juram haver no SLB. Nesta altura, apetece-me, a mero título exemplificativo, arrolar para este texto a cartilha dos não sei quantos penáltis não assinalados a favor do Porto (já agora, não sei por que razão não têm também uma outra cartilha sobre o facto de não haver penáltis contra o FCP há precisamente 380 dias!). Não há programa e não há texto em que não se faça, semana a semana, a contabilidade devidamente actualizada e inchada por quem faz as presumidas contas e lança e malha. Uma cartilha de intenções, suposições e articulações. Mas já, no Benfica, por exemplo, contabilizar a distribuição dos árbitros que apitam os três grandes pelas respectivas Associações distritais e isso ser falado por outros benfiquistas com expressão pública é cartilha, dizem-nos com inusitada iluminação. Todavia, mesmo cartilhada que seja, é cartilha de pura factualidade.
Em suma: cartilhas há muitas, oh distraídos! Há-as por via endovenosa (que mais parece endovenenosa), há-as por via intramuscular, há-as por simpatia epidérmica, há-as por posologia oral xaropada, há-as por emprenhar por via auricular, há-as por acefalia militante, há-as por recibo verde, há-as por rendimento mínimo garantido, etc. E, ao que dizem os bem-informados, há a do Benfica que tem o pecado original de ser por escrito e por e-mail. Pois é, o problema é a forma, não é o método, nem o conteúdo. Viva o formalismo! E vivam as cartilhas para totós!
A tomado do poder
Dias antes de 25 de Abril, que hoje se comemora, saiu mais uma ração de combate para a mesa dos cartilheiros anti-Benfica! Desta vez e ao que li, trata-se de alegados documentos, certamente adquiridos (quem sabe se forjados ou adulterados) por obra e graça da mais profunda deontologia profissional e da imbatível moralidade. Parece que - imagine-se - há uns seis anos se traçava no Benfica um terrível plano para controlar tudo e todos, em forma de PowerPoint apresentado numa reunião (secretíssima, evidentemente) de quadros da Benfica SAD. Tal hedionda estratégia propunha-se controlar todos os órgãos dirigentes do futebol e da arbitragem (onde é que eu já havia isto, antes?) e, sobretudo, o poder político, o poder judicial, o poder legislativo, o poder mediático, só creio que escapando a Presidência da República. É obra demoníaca de uma ambição totalitária que o meu clube terá gizado, credo! E com os outros clubes a dormir, veja-se lá o maquiavelismo encarnado! Ao que lei, tratava-se um plano quinquental, à boa maneira soviética. Mas, pelos vistos, terá fracassado esta tão bem urdida e oculta operação de tomada de assalto pelo SLB dos poderes do Estado de direito democrático.
Denunciado tão fantasmagórico golpe de Estado, os papagaios do costume têm replicado a intentona sem se rirem.
Bem hajam, cartilheiros unidos, por nos garantirem a normalidade constitucional deste nosso querido País!
Podemos dormir descansados, agora."
Bagão Félix, in A Bola