"Cá vai o exercício difícil do copo meio cheio, num futebol onde quase não se fala de futebol propriamente, de jogo, de jogadores, de equipas além das três de sempre, com os seus jogos, os seus casos, os prejuízos sempre e os benefícios nunca, os comunicados incendiários, os comentadores indignados, os insultos nas redes socias, a diabolização dos rivais. E, todavia, há vida para além desta insanidade instalada e coisas boas a acontecer, mesmo que não pareça.
Destaco cinco emblemas para já, equipas com argumentos diferentes e perfis de jogo muito diversos, mas que exibem duas características particularmente relevantes para subir o nível do espetáculo e justificar o preço (elevado) da mensalidade televisiva: tentam jogar o jogo todo, e não apenas a metade defensiva, e reservam sempre lugar para os artistas, fazendo até coincidir uns quantos no mesmo onze, nalguns casos. É por isto que me parece justo chamar a atenção dos leitores para Boavista, Famalicão, Moreirense, Gil Vicente e Farense, aqui alinhados pela atual posição na tabela.
Petit começa a ser percebido como um treinador que é mais que um motivador a pedir empenho. Este Boavista é mais que organização defensiva e disponibilidade para duelos. Tem ideias com bola, não perde a oportunidade de se estender e, inibido de contratar, descobriu reforços em casa que são provas de uma intenção positiva de jogo: Miguel Reisinho, finalmente livre de lesões a acrescentar critério a meio-campo, e Tiago Morais, a cumprir o destino anunciado de um agitador que também tem golo. E depois há a afirmação de Makouta, mais que um jogador apenas “físico”, e Bozenik, já um dos melhores 9 da Liga.
O Famalicão tem qualidade de plantel para produzir mais, mas a organização está em crescendo e a intenção ofensiva nunca está distante numa equipa que faz alinhar, em simultâneo, jogadores como Limatta, Aranda e Puma Rodríguez (ou Chiquinho), para mais à frente de médicos que cuidam bem da bola, como Zaydou ou Lacoux. Quando encontrar caminhos mais eficazes (e ousados) para ligar a construção à definição irá crescer ainda mais, por tentador que seja lançar depressa em Cádiz, que está a fazer bela época e é sempre recurso eficaz ao jogo mais elaborado que procura.
O Moreirense é capaz de ser o projeto tático que mais entusiasma até agora. De orçamento modesto como sempre, com equipa baseada no plantel que subiu de divisão, viu Rui Borges equilibrar uma competente organização defensiva com uma muito interessante criatividade coletiva quando em posse. Mais uma vez, o perfil dos jogadores escolhidos denuncia as (boas) intenções de um técnico. A conclusão é óbvia quando vão a jogo ao mesmo tempo Ofori, Franco, Alanzinho e Camacho: esta equipa vai reivindicar a bola sempre que puder e tem bem claro o que fazer com ela. Claramente merecia (ainda) mais pontos que os que tem.
O Gil Vicente compôs um bom plantel, com soluções de qualidade, em particular no meio-campo, ao ponto de um craque como Fujimoto já ter sido suplente em alguns jogos. Mas surgiu, entretanto, Maxime Dominguez, talvez o jogador mais surpreendente da prova, agressivo sem bola e muito esclarecido com ela: E aparece também Martim Neto a pedir espaço e vê-se que Pedro Tiba está como novo, além de competente na posição 6. A capacidade ofensiva também exibe maior força, desde que Félix Correia se confirma como mais valia evidente – que grande jogo fez no Dragão! – e se revela Depú, jovem ponta de lança angolano, para resolver o problema de um ataque que parecia de pólvora seca.
O Farense é outra boa surpresa. Quando parecia na curva descendente da carreira, José Mota agarrou-se ao 1.4.3.3 que sempre foi sua imagem de marca (nos melhores anos no Paços e na época de inesquecível no Leixões), colocou os homens nos lugares certos e constrói o jogar sobre um meio-campo de qualidade indiscutível. Com Falcão como pêndulo e dois interiores de valor firme - Fabrício Isidoro (mais rotativo) e Matheus Oliveira (mais organizador) - a equipa consegue sempre chegar-se à frente. E a esses filhos da arte, ao de Paulo Isidoro e ao de Bebeto, ainda se junta Belloumi, outro descendente de uma lenda, o argelino Lakhdar com o mesmo apelido, embora a lembrar mais uma outra, ainda no ativo, Ryiad Mahrez. Igualmente esquerdino a partir da direita, dificilmente atingirá a dimensão do ex-Manchester City, mas que tem futebol para voos mais altos não duvido. E no ataque não faltam soluções e todas já têm acrescentado qualquer coisa neste arranque de prova: Marco Matias, Rui Costa, Bruno Duarte, Zé Luís, Rafael Barbosa. Houvesse a mesma qualidade na defesa – e não há - e daria como certo um lugar na primeira metade da tabela. Ainda assim, o Farense de Mota deixou rapidamente de estar entre os favoritos à descida e esse mérito já ninguém lhe tira."