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terça-feira, 31 de março de 2015

Na tarde de Coimbra em que as senhoras fugiram...

"Segunda conquista consecutiva do Benfica no Campeonato de Portugal - o de 1930/31. Frente ao FC Porto por (3-0), no velho Campo do Arnado, em Coimbra, com dois golos de Vítor Silva e a prosa belíssima de Tavares da Silva.

O Benfica sempre teve um jeito especial para ganhar finais de competições ao FC Porto - e não, não me venham falar da Supertaça neste caso porque a Supertaça não é uma competição com final, é uma disputa apenas de um jogo (ou dois, em tempos), muitas vezes com um dos participantes sem qualquer direito de lá estar por não ter ganho prova nenhuma.
Falo da Taça de Portugal, da Taça da Liga e do Campeonato de Portugal, que é o tema de fundo destes últimos artigos que aqui venho publicando, na tentativa de relembrar essa competição que depois (a partir de 1938/39) recebeu o nome de Taça de Portugal, pelo que o Benfica ou soma três Campeonatos de Portugal no seu palmarés ou contabiliza 28 Taças de Portugal, para o caso vai dar ao mesmo não se desse um estranhíssimo esquecimento de tais vitórias.
Vamos as factos:
No dia 28 de Junho de 1931, defrontam-se em Coimbra, no Campo do Arnado, Benfica e FC Porto.
Este Campo do Arnado pertencia ao velho Sport Club Conimbicense e situava-se nas traseiras da fábrica «A Ideal» na parte norte da rua com o mesmo nome, Arnado pois então. Quanto à origem do toponímico não é preciso grandes investigações, vem de areia como é fácil de ver, campo arenado ou arenoso como eram muitos dos campos que estavam nas redondezas do Mondego.
Entram, portanto, as equipas em campo e o árbitro era António Palhinhas.
Como se recordam, se me leram na passada semana, o Benfica era o titular do Campeonato de Portugal - batera o Barreirense na final da época anterior por 3-1, após prolongamento, no Campo Grande.
O FC Porto, por seu lado, já tinha conquistado dois títulos, em 1921/22 (logo no primeiro) e em 1923/24.
Para atingirem o jogo decisivo, os 'encarnados' afastaram: Estrela de Portalegre (8-3); Olhanense (5-1, 0-2, 1-2 e 2-0 - anulado o resultado de 2-1 a favor do Olhanense visto o prolongamento do jogo ter tido mais tempo do que o fixado pelo regulamento - falaremos aqui um dia sobre esse estranhíssimo jogo); Lusitano de Évora (7-0 e 4-2) e Vitória de Setúbal (3-0 e 2-1).
Quanto ao trajecto do FC Porto, foi este: Vianense (7-0); Casa Pia (2-1 e 4-2); Boavista (4-4 e 3-0) e Marítimo (2-1 e 3-2).
Contava Tavares da Silva
«Coimbra, uma fidalga terra acolhedora que sabe receber as pessoas que a visitam, tinha ontem o aspecto dos dias de festa, de grande festa», escrevia o enorme Tavares da Silva no «Diário de Lisboa».

João Joaquim Tavares da Silva: formado em Direito, jornalista e treinador de Futebol, campeão pelo Sporting em 1953/54, autor da «História dos Desportos em Portugal» juntamente com Ricardo de Ornellas e Ribeiro dos Reis, o inventor da expressão «Cinco Violinos» em referência a Jesus Correia, Travassos, Peyroteo, Vasques e Albano. Um dos maiores!
Continuo a citá-lo: «Além dos comboios especiais que conduziram muita gente a todo o momento, dum lado e doutro chegavam automóveis trazendo desportistas. Viam-se bandeiras azuis - Futebol Clube do Porto - e vermelhas - Sport Lisboa e Benfica - por toda a parte (...) O Campo - afirmemo-lo - não merece uma final. Não possui acomodações suficientes. As bancadas de madeira, julgamos que improvisadas com rapidez, ameaçavam mesmo ruir. As senhoras, assustadas, fugiram... e não devem ter ficado com muito boas recordações deste jogo de foot-ball».

Mesmo sem senhoras, joga-se. O Benfica dispõe-se assim e FC Porto como se segue:
BENFICA: Dyson; Bailão, Luís Costa; João Correia, Aníbal José, Pedro Ferreira; Augusto Dinis, Sampaio, Vítor Silva, João Oliveira, Manuel Oliveira.
FC PORTO: Siska; Avelino Martins; Filipe Santos, Álvaro Pereira, Anaura; Lopes Cameiro, Valdemar, Norman Hall, Acácio Mesquita, Castro.
O Benfica vence com naturalidade. Com segurança.
«O Benfica venceu, já se disse. Jogou mais do que o FC Porto. Também é uma verdade. Teve um maior poder realizador. E isto não pode sofrer contestação. O score - três, a cifra - é expressivo, eloquentemente expressivo. Numa palavra e em síntese - o Benfica revelou-se melhor equipa».
Deixemos que o mestre vá escrevendo. E descrevendo. Os golos.
«1.º - Vítor Silva 'shoota' ao 'goal'. A bola bate nos postes, vem outra vez para os pés de Vítor que marca, sesgado, o primeiro ponto. Foi o 'goal' que mais gostámos. Aquele que mais apreciámos pela dificuldade da colocação do 'shoot'.
2.º - 'Corner'. A bola vem a cair perto das redes. Siska e Sampaio chocam-se. E entretanto, Temudo, que acorrera em auxílio do seu companheiro, com uma 'sapatada' faz com que a bola ultrapasse a linha de 'goal'».
(O parêntesis é meu para assinalar que, por exemplo, Ricardo Ornellas, que também fez a crónica deste jogo, atribuiu o golo a Dinis).
«3.º - Vítor Silva, sempre o Vítor Silva, de posse de bola, 'dribla' um adversário e, repentinamente, sem ninguém esperar, dispara com o pé esquerdo um grande 'shoot'. Siska ainda se estirou mas... estava irremediavelmente batido».
Benfica de novo Campeão de Portugal. Pelo segundo ano consecutivo. A única 'dobradinha' da prova com essa denominação.
O mérito da vitória era indiscutível. Se duvidarem, leiam as palavras de quem lá esteve: «A superioridade foi clara, nítida. O domínio 'vermelho' - insofismável (...) A equipa do sul - confiada, serena. O grupo do norte - nervoso, demasiadamente nervoso. Os jogadores do Benfiquenses a realizarem as suas jogadas com ponderação e até com uma certa calma. Houve fases bem feitas, bem trabalhadas, de merecimento».
Não há como desmentir. Seria preciso esperar até 1934/35 para que o Benfica voltasse à final do Campeonato de Portugal.
Será preciso esperar até à próxima semana para que vos explique o que então se passou."

Afonso de Melo, in O Benfica